Energia

A última fronteira
Veja

Com tecnologia menos agressiva ao ambiente,
novas usinas na Amazônia evitarão repetir os
desastres de Balbina e Tucuruí

Duda Teixeira

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As novas hidrelétricas da Amazônia
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Energia sem destruição

Uma nova fronteira está sendo aberta na Amazônia. Não se está falando, desta vez, de agricultura, e, sim, de energia. O governo federal pretende construir três hidrelétricas gigantes na região. Duas delas, a de Santo Antônio e a de Jirau, no Rio Madeira, em Rondônia, que constam do Programa de Aceleração de Crescimento (PAC), são a solução que o Palácio do Planalto habitualmente contrapõe à previsão feita por especialistas de que uma crise energética de grandes proporções se aproxima. Pela vontade oficial, as construções no Rio Madeira começariam no ano que vem, de modo que Jirau entrasse em operação em 2011 e Santo Antônio em 2012. Com capacidade somada de 6.450 megawatts, as duas usinas poderiam atender sozinhas ao consumo do estado do Rio de Janeiro. A terceira hidrelétrica, a de Belo Monte, no Rio Xingu, no Pará, proporcionaria ainda mais energia, 11.000 megawatts, e também está no PAC. Apesar do empenho pessoal do presidente Lula, todos os projetos permanecem em compasso de espera devido a restrições ambientais. Na semana passada, o Ibama informou que o estudo da licença prévia das usinas do Rio Madeira, iniciado há 22 meses, chegou à fase final. Já os estudos de impacto ambiental de Belo Monte, embargados pelo Ministério Público desde 2001, recomeçaram a ser feitos em janeiro, com autorização judicial.

O Brasil dispõe de uma rigorosa legislação de proteção ambiental. Ela impõe aos projetos de novas hidrelétricas exigências minuciosas para reduzir ao máximo os efeitos negativos sobre a natureza e os moradores das proximidades. Na prática, infelizmente, as regras são usadas mais para bloquear obras de infra-estrutura do que para fiscalizar e proteger a natureza. Pelos dados do Ministério do Meio Ambiente, só no período de doze meses anteriores a agosto de 2006, 13.100 quilômetros quadrados de Floresta Amazônica – o equivalente a meio estado de Alagoas – foram derrubados para abrir espaço para a pecuária, a soja e outros fins. Os dados da devastação acelerada comprovam que a ameaça ambiental não está na construção de novas hidrelétricas, sobretudo porque estas adotam hoje tecnologias menos agressivas à natureza. O que aumenta o risco de o avanço energético na Floresta Amazônica fugir ao controle é o avassalador fracasso demonstrado pelo estado brasileiro no cumprimento da tarefa de fiscalizar e impedir a destruição de áreas que devem ser preservadas. "As obras do Rio Madeira poderiam incentivar a ocupação de uma vasta área da Amazônia cujo ecossistema é muito delicado", preocupa-se o biólogo americano Thomas Lovejoy, presidente do Centro Heinz para a Ciência, em Washington.

Os desafios ambientais e econômicos das três usinas previstas para a Amazônia são proporcionais ao seu tamanho. Belo Monte, no Pará, foi projetada ao lado de florestas com grande biodiversidade e tem como vizinhos dez tribos indígenas. As usinas do Rio Madeira estão perto demais de áreas preservadas e de terras indígenas e longe demais dos principais centros de consumo. O custo da linha de transmissão até o Sudeste já foi estimado em 10 bilhões de reais, o que encareceria bastante o projeto, orçado inicialmente em 20 bilhões de reais. O desafio ambiental, por sua vez, foi enfrentado com novas tecnologias de construção com menores impactos diretos na natureza. Dessa forma, será possível evitar a repetição dos desastres causados no passado pela construção de grandes hidrelétricas na região, como Balbina e Tucuruí. Inaugurada em 1984, Tucuruí, no Pará, alagou uma vasta área de floresta e afogou, sem remorso, toda a fauna que ali vivia. Também atraiu indústrias e migrantes, o que provocou a devastação de mais da metade da floresta nos sete municípios mais próximos. Nada disso se repetirá no Rio Madeira.

Divulgação

Usina de fio d'água no Rio Danúbio, na Áustria: sem reservatório


Em vez de uma só usina com um grande reservatório, o projeto prevê duas menores, cujas turbinas serão acionadas pelo sistema a fio d'água. Nesse método, toda a água que chega é aproveitada pelas turbinas, do tipo bulbo, e, em lugar
de formarem um lago, as águas avançam 500 metros em cada margem do rio durante o período de cheia. O projeto prevê ainda que as árvores da área a ser alagada sejam retiradas antes e de forma progressiva. Desse modo, os animais podem sair andando e não se forma um lago que se tornaria uma fonte de gases de efeito estufa causado pela decomposição do material orgânico, como ocorre hoje na usina de Balbina. As empresas Furnas e Odebrecht, que financiaram os relatórios de impacto ambiental das usinas, propõem que os canais laterais para a passagem dos peixes que sobem o rio no período da desova tenham curvas e fundo irregular, para imitar o leito natural. Seria possível controlar a quantidade de água e a correnteza para favorecer diferentes espécies de peixe, de acordo com a época do ano.

As medidas para reduzir os impactos ambientais nas novas hidrelétricas representam uma gorda fatia do total da obra. Na usina de Peixe Angical, uma obra da iniciativa privada inaugurada no ano passado no Rio Tocantins, as medidas sociais e ambientais responderam por 13% do orçamento. O projeto exemplar incluiu a construção de hospital e residências para as pessoas desalojadas, aterros sanitários, cursos de educação ambiental, viveiros de espécies retiradas e o resgate de 55.000 animais, entre eles um milhar de invertebrados. Até minhocas foram recolhidas e transportadas para locais seguros. Nas usinas do Madeira, grupos de investidores já deram demonstrações de que aceitam arcar com esse custo ambiental. "A maior ou menor degradação do ambiente depende de quanto um país está disposto a investir em medidas que reduzam ou compensem o impacto", diz o engenheiro Rafael Schechtman, diretor do Centro Brasileiro de Infra-estrutura (CBIE), uma consultoria do Rio de Janeiro. "A questão é saber se a sociedade está disposta a arcar com esse custo."

O último projeto das usinas do Rio Madeira enviado para análise do Ibama reserva áreas para a construção, em uma segunda etapa, de eclusas, tanques de água que permitem às embarcações superar o desnível das barragens. Uma vez concluídas, as eclusas vão permitir que a produção agrícola de Rondônia e de Mato Grosso – que hoje é transportada com dificuldade por uma estrada federal toda esburacada – seja levada em barcaças até Porto Velho ou Itacoatiara, no estado do Amazonas. Neste último porto, o carregamento poderia ser transferido para navios maiores e seguir diretamente para destinos em qualquer ponto do mundo. Com a construção de mais uma usina na fronteira com a Bolívia e outra no país vizinho – projetos que teriam o apoio e o financiamento brasileiros –, a hidrovia pode chegar a 4.155 quilômetros, por vários rios. Um estudo considera que a hidrovia proporcionará um aumento na produção de grãos de 28 milhões de toneladas ao ano na área de influência do projeto. De acordo com uma conta feita pela ONG Amigos da Terra, isso vai requerer um aumento de 350.000 quilômetros quadrados na área agrícola, o que daria uma área maior do que São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo juntos. Evidentemente, cabe ao estado o dever de impedir que o crescimento da produção ocorra à custa de desmatamentos da Floresta Amazônica.

As dificuldades criadas por motivo ambientalista vão adiar, mas não devem impedir para sempre, a instalação de outras hidrelétricas na Amazônia. A pressão por novas fontes de energia no Norte tem boas razões para existir. Dados da Eletrobrás mostram que o Brasil dispõe em seus rios de quedas-d'água em quantidade suficiente para multiplicar por quatro sua capacidade hidrelétrica – mas 40% de todo esse potencial está na bacia do Rio Amazonas. Fora da Região Norte, poucos locais poderiam receber usinas com capacidade maior do que 1.000 megawatts, o necessário para abastecer uma cidade com 3 milhões de habitantes. "Estamos todos voltados para o norte. As grandes hidrelétricas que podiam ser feitas no restante do Brasil já foram construídas", diz Renato Lanzi, diretor da Alstom, que cogita instalar uma fábrica de turbinas em Porto Velho para suprir futuras obras na Amazônia e no exterior. Se a economia brasileira crescer 5% ao ano, como está nos planos do governo Lula, será preciso acrescentar 3.500 megawatts por ano à capacidade energética do país. Com a construção das pequenas hidrelétricas e termelétricas que já receberam licença ambiental, o máximo de acrescimento até 2010 será de 1.272 megawatts anuais, segundo o CBIE. "A partir do ano que vem, o sistema elétrico já poderá operar no limite", diz Adriano Pires, diretor da consultoria. "Bastará uma temporada de chuvas fracas ou um aumento no consumo para que tenhamos um novo apagão."

Das usinas de menor porte que conseguiram a licença prévia do Ibama e foram oferecidas em leilão para ser construídas pela iniciativa privada, poucas despertaram o interesse dos investidores. Um dos motivos é o medo de ter a construção interrompida. Atualmente, qualquer cidadão munido de título de eleitor pode recorrer à Justiça e mudar completamente o andamento da obra de uma usina caso a ação seja aceita por um juiz. Segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), existem 25 usinas hidrelétricas com cronograma parado ou atrasado devido a obstáculos criados pelo Ibama, pelo Ministério Público, por órgãos estaduais e movimentos ambientalistas. O preço congelado das tarifas e a elevada carga tributária que incide nas contas de luz, de 51%, também afugentam os investidores. "Não podemos nos comprometer com projetos que nos farão perder dinheiro. É minha obrigação dar um retorno aos acionistas", diz António Martins da Costa, diretor-presidente da Energias do Brasil, grupo europeu responsável pela hidrelétrica de Peixe Angical. A Energias anunciou no ano passado a disposição de investir 1 bilhão de reais em novas usinas, mas o dinheiro ainda está guardado no banco. "Em vez de termos um desenvolvimento sustentável, estamos enfrentando uma estagnação insustentável", define Jerson Kelman, diretor-geral da Aneel.



Foto Nilton Rolin

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