Prenúncio de tempestade

Política - PT, PMDB e instituições partidárias

Fábio Wanderley Reis
Valor Econômico
19/3/2007

Vivemos um claro momento de instabilidade do quadro partidário. Se tomamos os principais partidos, há, naturalmente, a crise do PT em seguida a Waldomiro Diniz e às denúncias de 2005, com a seqüela de fraturas importantes, identidade e capital simbólico comprometidos e relações problemáticas com Lula. Há a crise do PSDB: apesar da eleição de governadores em Estados importantes, vimos dificuldades embaraçosas na escolha do candidato à Presidência da República para a eleição de 2006, nova derrota na disputa presidencial, depois de uma campanha conduzida com notável inconsistência e com a negação do passado e de linhas administrativas que vinham sendo adotadas pelo partido, divisões entre as lideranças maiores, perspectiva de disputas talvez corrosivas para 2010 e a procura de idéias que avancem em relação às perplexidades de uma socialdemocracia posta em xeque pelo mundo afora. Há o PFL, derrotado e apequenado na última eleição, mudando de nome e em busca de nova imagem.

Nesse quadro, surpreende o que se observa no PMDB, onde a fragmentação e as velhas brigas de sempre se repetem - e resultam em singular coesão! Do ponto de vista do governo, não obstante a precariedade da aposta na confiabilidade do apoio pemedebista para a qual a história do partido adverte, contar em sua base com o PMDB que sai da reeleição de Michel Temer provavelmente justifica esperar melhor suporte no Congresso do que o disponível no primeiro mandato de Lula, mesmo antes do descalabro da crise. Mas que dizer numa perspectiva institucional mais ampla?

Construção institucional na faixa partidária?

A questão crucial envolvida na eventual estabilização do quadro partidário brasileiro é a de como obter a identificação estável do eleitorado, ou de suas parcelas majoritárias, com alguns partidos cujas relações permitissem falar propriamente de um "sistema" partidário. Idealmente, isto é, na hipótese do eleitor "racional", essa identificação ocorreria num processo em que as posições do eleitor sobre problemas diversos que o afetam o levassem a identificar-se com o partido percebido como tendo posições semelhantes às suas. Os dados das pesquisas mostram há muito, contudo, que as coisas se passam de maneira bem diferente para a maioria do eleitorado popular: uma vez fixadas as simpatias partidárias em razão de coisas que podem surgir como "espúrias" na óptica do eleitor "racional", ou de certa visão convencional do jogo político-eleitoral, o eleitor atribui simplesmente ao partido (ou candidato), ou "projeta" sobre ele, as posições que sua precária informação lhe dita como corretas ou adequadas. A percepção de certas polaridades singelas, como a contraposição entre "pobres" e "ricos", se revela decisiva no estabelecimento das simpatias ou aversões, numa dinâmica afim ao que costumamos designar como populismo.

Sem dúvida, a implantação comparativamente eficiente e duradoura do PMDB no país deve-se, em algum grau, à herança do MDB, que se beneficiou da dinâmica descrita quando a atuação do regime de 1964 junto aos partidos superpôs (equivocadamente, do seu próprio ponto de vista) a artificial polaridade Arena-MDB ao simplismo das percepções do eleitorado - somando-se a isso o fato de que essa herança se ligou ao enraizamento regional bem-sucedido do PMDB, embora nesse enraizamento esteja uma das razões da fragmentação e da desunião interna. As pesquisas são também eloqüentes em mostrar, mais tarde, o papel cumprido na trajetória petista, não obstante toda a retórica ideológica de suas lideranças e de certa militância, pelas ressonâncias comuns entre um "partido dos trabalhadores" e um simples "partido dos pobres". E aqui também cabe somar, naturalmente, o apelo popular da figura de Lula.

Uma diferença importante reside em que o PT, com a junção do simbolismo populista ao inegável e peculiar esforço de construção institucional, conseguiu assegurar singular expansão dos níveis de identificação popular. Dados de 2002 o mostravam com 23% das preferências do eleitorado num total que não ia além de 35% de eleitores identificados com qualquer partido (avanço que se deu em boa medida em detrimento do PMDB, que passa de 15% das identificações em 1989 a 3,8% em 2002: embora fosse ainda o segundo colocado nesse ano, tinha o PSDB em seu encalço, com 3,7%). E dados de agora, divulgados nos últimos dias pela Fundação Perseu Abramo, mostram, de maneira consistente com os resultados eleitorais gerais do partido (e surpreendente se vistos os dados na óptica da crise), que a especial penetração eleitoral do PT se mantém (aparentemente em 29%, enquanto o PSDB teria alcançado o segundo lugar, com 7%).

Mas segue prevalecendo o fato, que os dados recentes não alteram de forma significativa, de que a grande maioria do eleitorado não se identifica estavelmente com partido algum, o que indica que mesmo os mecanismos descritos acima, de "projeção" desinformada com respeito a partidos ou candidatos, possivelmente se restringem ao calor das disputas eleitorais e operam em circunstâncias gerais de um eleitorado de costas para a política e mesmo hostil a ela. Não há dados ou informações, que eu saiba, que permitam juízo seguro sobre a consistência do "lulismo", entendido como a identificação com a liderança pessoal de Lula. De todo modo, não resta dúvida de que, sem embargo do que possa talvez justificar apostas comparativamente otimistas quanto à eficácia governativa do segundo mandato de Lula, é bem claro que desandou o trabalho de construção institucional na faixa partidária que o prolongado enfrentamento PT-PSDB parecia representar. Avançaremos com um lulismo somado a fragmentos do PT pós-Roberto Jefferson e ao "coeso" PMDB de Michel Temer, a enfrentar-se a uma oposição desorientada?

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

fabiowr@uai.com.br

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