A insustentável leveza de dever favôr






Editorial - O bolo da Achiropita

Um critério para se julgar um governante é o que o aborrece. O presidente Lula, por exemplo, não disfarçou sua irritação com a briga de foice pela conquista dos cargos de comando das estatais do setor elétrico subordinadas ao Ministério de Minas e Energia - a Eletrobrás, a Eletronorte e a Eletrosul. O começo da história e, principalmente, seus últimos episódios são bastante conhecidos, mas não custa repetir: a fim de quitar outra parcela da sua dívida aparentemente impagável com o senador José Sarney, Lula nomeou titular da Pasta quem o oligarca indicara - o senador, também maranhense, Edison Lobão, iletrado confesso nos assuntos da área. A sua única credencial para a função, conforme o comentário sarcástico da revista inglesa The Economist, é o prenome, que remete ao genial inventor da lâmpada elétrica.


Além disso, pode-se dizer, Lobão não é um, são muitos. Ele se multiplica nos protagonistas desse espetáculo de ataque ao bolo da Achiropita, com os caciques do PMDB se engalfinhando para entregar aos seus apadrinhados a melhor fatia do bolo. Pobre ministro, obrigado a dedicar o melhor do seu tempo à voracidade dos correligionários. Seria o caso de perguntar do que ele se ocupará quando, mal ou bem, o butim for partilhado, mas passemos. O que fala mais alto é o desagrado do presidente da República. Enquanto a ministra da Casa Civil Dilma Rousseff (ex-Minas e Energia) quebra lanças para salvar do clientelismo ao menos aqueles postos de direção das empresas de eletricidade que exigem dos seus ocupantes conhecimentos especializados, o que exaspera Lula não é o loteamento político que põe em risco um sistema do qual depende o crescimento da economia do País. É a duração da briga pelos lotes. "O PMDB que se entenda", disse ele a Lobão, a quem recebeu anteontem. "Não sou eu que vou arbitrar isso." O que escandaliza na declaração irritada é o que ela não contempla: o zelo pelas credenciais técnicas dos que vão ocupar os cargos - com ou sem a ameaça de uma crise de suprimento de energia elétrica no horizonte previsível. Mesmo que se admita, numa concessão caridosa, que o presidente não pudesse de forma alguma excluir Minas e Energia da já numerosa relação daqueles Ministérios cuja ocupação é ditada pelo desejo de garantir apoio no Congresso, ele deveria usar a autoridade que lhe dá o fato de os seus aliados precisarem mais dele do que ele deles, para estabelecer de antemão zonas proibidas ao tráfico de influência. É simplesmente inconcebível que ao chefe de governo mais popular da história da democracia brasileira só reste, por definição, prostrar-se diante dos políticos insaciáveis.


Uma coisa é a visão cínica da administração pública como terreno de caça e espaço de acomodação dos interesses o mais das vezes espúrios dos chefes partidários. Outra coisa é o dever do presidente, não de arbitrar as pendengas dos aliados, mas sim o de definir quais as áreas que lhes devem ser inacessíveis porque assim exige o interesse público. Ninguém se surpreende quando o interlocutor do Planalto com os manda-chuvas da política, o ministro José Múcio Monteiro, das chamadas Relações Institucionais, diz que: "Queremos diminuir conflitos e homogeneizar os pleitos para não atender a um grupo, desatendendo a outro." Mas a maioria dos brasileiros - pelo menos enquanto for o que teima em ser a cultura política nacional - ficaria surpresa se ele se preocupasse com aquilo que atende ou desatende ao "grupo" maior, a sociedade brasileira.


Mas, quando essa não é a prioridade do primeiro mandatário, o cenário é desanimador. Repita-se: não está em jogo um daqueles Ministérios ou Secretarias cujos titulares são equiparados a ministros, criados exatamente para satisfazer interesses localizados de variada natureza, a fim de reduzir o quanto possível as pressões a que nenhum chefe de governo pode ficar indiferente. Pelo que está ao seu alcance realizar - e pelo tamanho do prejuízo que os seus erros possam acarretar ao País -, há, sim, Ministérios e ministros de primeira e de segunda classe. Ao que se assiste é o efeito cascata da decisão subalterna de entregar um Ministério de primeira a um ministro de segunda. É mais um triunfo da política de patronagem que ainda impera nos grotões. E mais uma capitulação do presidente Lula.

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