A verdade da comissão

Por Helio Schwartsman*

Só há um campo onde não pode haver nenhuma espécie de prescrição e é o da História. Nenhum governo tem o direito de privar a sociedade de descobrir o que aconteceu consigo própria ao longo do tempo, por piores que tenham sido os crimes cometidos pelas instituições do Estado.

Originalmente publicado na Folha Online em 07/01/10

Criar uma comissão do governo (de qualquer governo) para apurar a verdade é meio caminho para o engodo. Ainda assim, considero oportuna e necessária a Comissão da Verdade proposta pela atual administração com o objetivo de passar a limpo os crimes cometidos por representantes do Estado durante a ditadura militar. Existem famílias que ainda não sabem o que ocorreu com seus parentes desaparecidos. De resto, a população como um todo não pode ser privada do que podemos chamar de direito à verdade histórica.

Se o ministro da Defesa e os comandantes das Forças Armadas não gostam, é um direito deles. Numa democracia, ninguém é obrigado a concordar com o chefe ou exercer cargo que não queira. Eles podem perfeitamente deixar seus postos e passar para a reserva. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva não terá dificuldades para achar substitutos. É até risível imaginar que exista hoje o perigo de quartelada ou golpe.

Pelo que pude acompanhar das discussões, o debate já surge marcado por um vício de origem, que é o de igualar as partes. Lamento decepcionar alguns, mas nem tudo é um Flá X Flu. Os que se insurgem contra a comissão falam em revanchismo e protestam contra uma suposta parcialidade, pois o comitê teria a incumbência de investigar só os crimes cometidos pelas forças de segurança, deixando de lado os delitos perpetrados pelos que participavam dos grupos de esquerda.

A queixa não procede. Já passei da idade de acreditar em maniqueísmos. Não me parece que a maior parte dos que combatiam em movimentos de resistência ao golpe militar o fizesse por amor à democracia. É público e notório que a meta de nove entre dez dos grupos clandestinos era instituir no Brasil alguma das versões daquilo que Marx chamou de ditadura do proletariado. Mas daí não decorre que estivéssemos em uma guerra civil na qual dois lados se enfrentavam em igualdade de condições e, mais importante, de obrigações jurídicas.

Embora combatentes de esquerda se acreditassem legitimados por uma "moral superior" até a matar para lograr seus objetivos, eles eram, sob o prisma da lei, criminosos comuns protegidos pelas garantias fundamentais declaradas nas Constituições de 1946 e, depois, de 1967, nenhuma das quais autoriza a tortura.

Os agentes da repressão, na qualidade de funcionários do poder público, tinham o dever legal de respeitar os direitos civis dos presos e assegurar-lhes a integridade física. O que se constatou, porém, é que houve uma verdadeira política de Estado, autorizada senão organizada pelos mais altos escalões da República, de violação desses direitos. Cabe ainda lembrar que as vítimas dos desmandos não se limitaram aos que pegaram armas para combater o governo, mas incluíram simples simpatizantes de partidos de esquerda e até familiares e amigos de guerrilheiros.

É justamente aí que reside a importância da Comissão da Verdade (ainda que tenhamos motivos de sobre para permanecer céticos em relação a seus êxitos). Enquanto as ações cometidas pelos grupos de esquerda são história antiga, no máximo do interesse de acadêmicos, há, nos desmandos cometidos por representantes do Estado, também um interesse institucional. O tal do "Direito à Memória e à Verdade" que consta do documento do governo e que tanto irritou os militares é uma forma de expiar as culpas oficiais e sensibilizar a população e a burocracia para que erros análogos não venham a ser cometidos no futuro.

Outro ponto sobre o qual os opositores da comissão insistem é o da Lei de Anistia. Eles afirmam que a mera existência do comitê vai ferir essa legislação. Receio informar que o referido diploma, promulgado em 1979, sob o governo do general João Batista Figueiredo, já não tem muita importância.

Originalmente, ele serviu para garantir que os exilados durante a ditadura pudessem retornar ao Brasil e reassumir suas funções. Numa segunda fase, com base em pareceres jurídicos de variadas origens, foi usado para evitar que agentes da repressão fossem processados. De toda maneira, a norma tornou-se uma peça de museu, pois ela extinguia a punibilidade de "crimes políticos ou conexo com estes" cometidos entre 1961 e 1979. Ora, mesmo que nenhuma anistia jamais tivesse sido aprovada nem estendida aos torturadores, os mais graves dos delitos em questão prescreveram em 1999.

Uma turma ligada aos direitos humanos sustenta que o crime de tortura é imprescritível, pois o Brasil é signatário de tratados internacionais que assim a qualificam. Eu até gostaria de abraçar essa interpretação, mas precisamos nos ater ao que diz o "livrinho" (Constituição). E a Carta elenca apenas duas categorias de delitos imprescritíveis: o racismo (art. 5º, XLII) e a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (5º, XLIV). Já a tortura figura no inciso XLIII como crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia. Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RHC 79.785) reafirma a lógica: a Carta prevalece sobre quaisquer convenções internacionais, incluídas as de proteção aos direitos humanos.

É melhor, portanto, que nossa valorosa soldadesca fique longe desse tipo de raciocínio jurídico. Uma interpretação mecânica dos dispositivos constitucionais nos daria argumentos não apenas para afirmar que a Lei de Anistia não vale para torturadores (não há direito adquirido contra norma constitucional, dirão sete de cada dez doutrinadores) como também para abrir um processo penal contra os participantes do golpe de 1964, este sim um delito insofismavelmente imprescritível nos termos do livrinho.

Brincadeiras à parte, não há nenhuma razão ponderável para que o Brasil, seguindo vários outros países que passaram por experiências similares, deixe de criar a sua Comissão da Verdade. O simples fato de a cúpula militar ficar irritada com esse gênero de iniciativa é a prova de que o processo é necessário para a consolidação da normalidade institucional.

Só há um campo onde não pode haver nenhuma espécie de prescrição e é o da História. Nenhum governo tem o direito de privar a sociedade de descobrir o que aconteceu consigo própria ao longo do tempo, por piores que tenham sido os crimes cometidos pelas instituições do Estado.

E, no que diz respeito à história, o governo Lula, apesar da louvável iniciativa da Comissão da Verdade, é devedor. A atual administração, no que imita a gestão do professor e intelectual Fernando Henrique Cardoso, deu ouvidos aos apelos do Itamaraty e dos militares e manteve a absurda figura do sigilo eterno de documentos oficiais, embora tenha tido diversas oportunidades para reparar seu erro. Na mais recente das reincidências, o governo enviou no ano passado ao Congresso o projeto da Lei do Acesso [a papéis do governo], no qual manteve esse verdadeira excrescência democrática, o equivalente gnoseológico de torturar a história.
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*Hélio Schwartsman, 44, é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas. E-mail: helio@folhasp.com.br

Comentários

Anônimo disse…
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Anônimo disse…
Bom o seu comentário,. No entanto peca em não abordar os crimes do outro lado. Qual é o crime maior: torturar ou simplesmente matar? porque julgar e criminalizar somente um lado? e o outro? eram inocentes estudantes? se eram quem os mandou e instruiu? os mandantes? Isso está igual ao resultado de um jogo que terminou 5 a 4. Quem fez 4 disse que venceu omitindo que levou 5 gols. Essa hipocrisia tem de acabar.
Anônimo disse…
Desperta Brasil. Os militantes de esquerda que hoje dominam os Poderes da Republica Federativa do Brasil, estão irmados para trabalhar em defesa do decreto presidencial que criou ou vai criar a Comissão Nacional da Verdade a partir de mudanças na lei de anistia. Precisamos estar atentos para que não se apurem somente os atos ilícitos que foram atribuídos aos militares. É necessário que se apurem também as barbáries que muitos deles cometeram durante a "revolução". As atitudes desses "ex-guerrilheiros" que dão sustentação ao governo Lula, deixam claro o desejo que eles tem por um poder perpétuo. (Sic) na imprensa desde a década de 60, muitos deles foram envolvidos em sequestros, assaltos a bancos e residências além de delações de pessoas que passaram a discordar nas mudanças das ações do grupo. A impressão que temos é que, estão querendo nos enganar como em 64,aplicando um golpe no golpe.



Leônidas Marques
José Augusto - BH disse…
Este comentário se esforça para ser equilibrado, mas não é. Expõe somente o raciocínio do lado (não do Presidente Lula) dos ministros à esquerda do poder. Podemos até concordar com a necessidade de passar essa história a limpo, mas que seja toda a história do período. De ambas as partes. Esse Decreto que institui a Comissão da Verdade, que pode ser chamado de AI-1 do PT, deveria ser antecedido de um debate aberto sobre sua necessidade, com representantes de ambas as partes e com o jogo aberto. Não isso que apareceu: um decreto que impõe somente um lado da questão, e ainda mais justificado como "resultado de debates internos de ONG's e PT, fechados, nos anos de 2003 e 2007, e levado escondido para o presidente Lula, no exterior, assinar sem ler ou saber do que se tratava. Para ser colocado em situação ridícula perante a nação que, agora, aos poucos, tenta entender os propósitos inconfessáveis (mesmo sob tortura).

É brincadeira? Só isso (atitudes sub-reptícias) já tira a moral, a seriedade de propósitos e qualquer restício de justiça ou pacificação do ato.
José Gomes disse…
José Gomes

No seu comentário sobre o "livrinho" (Constituição).... E a Carta elenca apenas duas categorias de delitos imprescritíveis:.... A AÇÃO DE GRUPOS ARMADOS, CIVIS ou militares, CONTRA A ORDEM CONSTITUCIONAL E O ESTADO DEMOCRÁTICO. (5º, XLIV).

Você posou de Jurista e acabou se "condenando" e reafirma que é IMPRESCRITÍVEL a AÇÃO de Grupos Armados que se insurgiram contra o Estado! Sim estes mesmos que hoje estão no poder, graças à DEMOCRACIA que eles mesmos tentaram destruir, tentam editar tal Lei somente contra quem lutou a favor do mesmo Estado!
João Guilherme disse…
Eu estou de acordo com a criação da Comissão da Verdade, desde que se apure a verdade dos dois lados. Tanto os militares como os guerrilheiros, cometeram atos abomináveis como matar um ser humano. Agora eu só não entendo que os que estão por trás dessa comissão, são justamente os ex-guerrilheiros. Por que partiu justamente deles essa idéia de se criar essa comissão? Eu acho que há algo de podre no reino da Dinamarca!!
Anônimo disse…
Filósofo,´kkkkkrrrrrr;

Cresce, meu filho, amadureça um pouquinho mais, quem sabe assim vc deixa de ser tão ridículo e pare de falar asneiras.

À propósito, não sou militar.
Anônimo disse…
kkkkkkrrrrr, filósofo, kkkrrrrrr;
A internet é igual papel, aceita qualquer besteira e não reclama de nada.
Penso que você caro Anônimo das 12:18 AM, é que não tomou biotônico fontoura para desobstruir a sua mente.
Um simples artigo colocado em discussão e sua reação é típica dos cães da época da ditadura.
Eu fico avaliando como você seria se fosse militar.
Certamente seria o primeiro da fila na "caçada" aos subversivos, estudantes, pretos e viados, não é mesmo?
Esse é o último comentário idiota de tua lavra, despeitado Anônimo das 12:21 AM, que publico por aqui.
Vai procurar a tua turma.
Por favor, não volte mais aqui e, se voltar, seja homem e assine o que escreve para eu te provar com quantas paus se faz uma canôa seu palhaço.
Anônimo disse…
Fica esses caras atrás dos torturadores, quantos esses terrorista comnunistas mataram, asaltaram banco, fizeram sequestros quantos pais de familia eles prejudicaram, vamos acabar com isso,quem erra tem que pagar pelo seu erro.Inclusive o Governo Lula estar cheio deles. Querem usar os terroristas mortos para jogar na politica.Nós já estamos precisando de outra revolução.
Anônimo disse…
Queria aplaudir e me solidarizar com a síntese feita pelo João Gomes. E lembrei de um velho ditado: "Não deve ir o sapateiro além dos chinelos...". Ao adentrar à seara legal, faltou base e os pés de barro são o mal dos "ídolos" de agora, que ao que parece, o ilustre autor do blog incensa.

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