Entrevista com o velho professor

Entrevista

São Paulo - Aos 81 anos, lúcido e com saúde, Aziz Nacib Ab'Sáber, o geógrafo e professor brasileiro. É um dos mais respeitados geomorfologistas do Brasil, sendo o primeiro a classificar o território brasileiro em domínios morfoclimáticos e a desenvolver a teoria dos redutos seguindo a linha de pensamento da teoria da evolução das espécies, do biólogo inglês Charles Darwin. Concedeu a seguinte entrevista em São Paulo, onde abordou com precisão o problema das queimadas, Amazônia...dentre outros assuntos.
Aziz Ab’Sáber afirma que nessa idade não poderia fazer tantas viagens à Amazônia.

"Mas faço e farei até morrer."

E é dele, um dos principais estudiosos da maior floresta tropical do mundo, que vem duras críticas à política ambiental do governo Lula. Não só pela recente divulgação de mais um recorde na taxa de desmatamento, mas também pela falta de planejamento para combater o problema.

"Como pensar otimistamente nos próximos tempos se tudo está em dinâmica desastrosa, devastadora e à custa de uma ignorância generalizada."

Nessa entrevista, o professor da Universidade de São Paulo chama atenção para o "governo paralelo" que se criou na Terra do Meio, no sul do Pará.

Há algum tempo, visitou a região e viu como fazendeiros e madeireiros desfilavam durante horas pela Transamazônica com bandeiras em grupos numerosos para amedrontar a população.

"Aqueles mesmos que dizem a propriedade é minha, e eu faço com ela o que quiser, como quiser e quando quiser pensando já no futuro do processo devastador." Para Ab’Sáber, o governo precisa agir já.
Leia abaixo os melhores trechos:

O Ministério do Meio Ambiente (MMA) justifica que a taxa de desmatamento foi contida, já que poderia ter sido muito maior porque houve um ano de crescimento econômico da ordem de 5%. O sr. se convence com a explicação?

Não posso discutir as desculpas e os argumentos que o MMA tem em relação ao gravíssimo problema da ampliação da devastação da Amazônia. Eu fico psicologicamente muito arrasado de falar da Amazônia na atual conjuntura. Quem não tem ética com o futuro e capacidade de pensar o futuro em diferentes níveis e profundidades de tempo, deixa que a devastação aconteça. E aí ficam justificando: "Ah, estatisticamente aconteceu isso, por isso." Só que o "por isso" é a conjuntura da economia de fazendeiros, madeireiros e agricultores em ganhos rápidos e imediatos e o futuro que se dane.

Onde o governo erra nessa questão?

Em primeiro lugar há que se pensar num governo capaz de ter um pensamento e um conjunto de estratégias para as questões nacional, regional e setorial. No caso do Brasil, estamos tendo um esforço para pensar o internacional, mas com excesso de visitas e pouco cuidado com o regional. Acharam que era possível fazer viagens custosas, levando um grande número de pessoas para conhecer outro país distante, que pode ou não ofertar vantagens econômicas. Enquanto isso deixam acontecer tudo o que as circunstâncias internas permitem.
Gostaria de dizer também que os membros do segundo escalão do governo Lula deveriam ter um melhor conhecimento com os fatos relacionados à tropicalidade. No caso da Amazônia, é uma área quente e úmida e está sob aquilo que muitos pesquisadores chamam de invasão capitalista. Os cientistas, jovens geógrafos e promotores sabem que nosso tempo todos os espaços viraram mercadorias. É preciso pôr isso na cabeça dos governantes brasileiros. Houve uma invasão permitida pela ignorância dos governos que sucederam desde o início da construção da Belém-Brasília, depois a Transamazônica e as outras estradas que rasgaram o coração das selvas.

Quem vem promovendo a invasão da floresta?

Foram vários ciclos sucessivos. Primeiro a agropecuária, depois as madeireiras, logo agora a soja e no intervalo de tudo isso os negócios amazônicos. Um político que enriqueceu muito rapidamente e outros grupos que estão até nos governos estaduais, filhos deles, eles justificam suas riquezas pelos negócios da Amazônia. E o governo não tem noção do que seja isso. Está acontecendo no centro sul do Pará, naquela chamada Terra do Meio, um verdadeiro governo paralelo por parte dos fazendeiros, madeireiros, dos que estão preocupados com devastação para eventual produção da soja.

O governo tem medo, interesses particulares ou não sabe como atuar em áreas de conflito como no sul do Pará? O que fazer na Terra do Meio?

No Brasil só se esboçaram dois Estados paralelos, perigosíssimos e que precisam de uma atenção estratégica. A região do narcotráfico no Rio de Janeiro e a Terra do Meio. Não posso dizer (o que fazer). Se disser, alguém vai dizer que está tudo errado. Eles (o MMA) só respeitam o planejamento estratégico pagando e pagando muito para imbecis. Não vou dizer quais são as soluções, porque não adianta coisa nenhuma perante o ideário vigente na administração federal.

Este governo criou 7,7 milhões de hectares de unidades de conservação, boa parte para frear a fronteira agrícola. É uma boa solução ou só vai criar novas frentes em outras partes da Amazônia?

O grande problema que o governo não entendeu é o seguinte: no caso de algumas reservas particulares que foram pensadas em termos de uma exploração auto-sustentável, a situação mudou muito porque elas estavam inseridas dentro de um corpo territorial contínuo. Com a devastação que houve, aqui e acolá, a coisa mudou muito. As reservas extrativistas que tentaram ser organizadas sozinhas não valem muito. Nem para a economia regional, nem para o futuro.

Qual a sua avaliação da equipe do MMA?

Não posso dizer mais para um jornal da importância do Estado, porque teria de me referir a nomes de pessoas, a ignorantes que foram colocados dentro do MMA, e não conhecem a Amazônia e ficam projetando coisas. Fazer concessões de Flonas (Florestas Nacionais) para ONGs estrangeiras... Deus meu, que ignorância. Alugar por 30 ou 60 anos é uma das mais terríveis propostas contra a soberania brasileira na Amazônia. Poucos dos que fizeram essa estupidez de propor aluguel de florestas nacionais para particulares de qualquer instância estarão vivos para responder por seus projetos esgarçados.

Qual é o risco?

Em 30 ou 60 anos, as Flonas poderão ser exploradas em qualquer nível sem que haja gerenciamento real, da maneira pela qual vão trabalhar explorando madeiras e podendo explorar tudo aquilo que fizeram, porque alugaram e pagaram. Estamos numa situação desesperadora. A conjuntura internacional está de olho numa região de um país imenso como é o Brasil e parece que os governantes não têm idéia disso.

Até que ponto a chamada internacionalização da Amazônia o preocupa?

Lá fora, quando qualquer membro do governo faz algumas pressões no sentido de ter alguma presença internacional, eles respondem com as seguintes frases: "O governo brasileiro não tem condições de gerenciar a Amazônia." Isso é muito triste, muito dramático. Se não houver um nível de esclarecimento e conhecimento integrado, se não existir uma política estratégica para gerenciar a Amazônia e impedir qualquer embrião de Estado paralelo, estaremos com a nossa soberania ameaçada permanentemente.

O governo tem cerca de 30 grandes projetos de infra-estrutura na Amazônia legal. O sr. teme os impactos dessas obras na região?

Como construir isso linearmente esquecendo as regiões que formam o todo? Existe uma preocupação com velhos projetos no Brasil. Primeiro a transposição das águas do São Francisco. Dizem: "Vai resolver o problema do semi-árido brasileiro." Sobre isso não digo mais nada, porque já chamei a atenção rigorosamente científica e as respostas são rigorosamente políticas. Outro projeto é fazer a ligação do Acre com o Pacífico. Projeto mal-estudado por todos e no presente momento desastroso, porque seria apenas uma rota da madeira para o Oriente.

Falta ética com o futuro...

Essa ética com o futuro tem de ser melhor colocada na cabeça dos governantes, do primeiro, segundo e terceiro escalões. Houve um rapaz que está dentro do MMA que perguntado numa TV se conhecia a Amazônia, porque estava forçando o problema dos aluguéis das Flonas e da concessão para ONGs estrangeiras, ele respondeu assim: "Ah, eu fui até o Amapá." A Amazônia com 4,2 milhões de quilômetros quadrados, e a justificativa dele é que foi até o Amapá? Por acaso estava pesquisando com pessoas muito importantes que queriam conhecer um pouco da Amazônia, dos grupos indígenas remanescentes do Amapá, e vi onde essa pessoa esteve. Era uma reunião de ONGs. É assim que se conhece a Amazônia?

O sr. tem alertado o governo?

Um dia a dona Marina (Silva, ministra do MMA) teria dito, segundo me contaram, que ela precisava forçar o encaminhamento da concessão do aluguel de Flonas, e alguém disse que precisavam consultar o doutor Aziz. Aí ela disse: não dá tempo de convencer o doutor Aziz. É assim que funciona assim lá em cima. Não posso ficar falando essas coisas, porque não tenho vontade de citar nomes. Se fosse citar nomes, meu Deus, (o secretário de Biodiversidade e Florestas, João Paulo) Capobiancos, Tassos Rezendes (gerente de projetos) e muitos outros que estão lá. E dentro do Ibama grandes problemas também, apesar de que o presidente do Ibama (Marcus Barros) é alguém que sempre respeitei muito. Não existe política estratégica dentro do Ibama capaz de gerenciar todo esse caos.

O sr. tem mais preocupação com a pressão de grileiros, madeireiros e fazendeiros ou a de ONGs?

Tenho impressão de que as ONGs deixaram de ser organizações não-governamentais para ser governo. É o caso do MMA, que foi inundado por ONGs. O marido da dona Marina Silva (Fabio Vaz de Lima) foi presidente das ONGs amazônicas. Tenho muito receio das ONGs, tanto as internas quanto as possíveis externas que nunca entenderam o mundo tropical e dentro do tropical um país como o Brasil com um regional diferenciado. Alguém disse, lá no MMA, que esses paulistas esqueçam a Amazônia e passem a pensar na despoluição do Rio Tietê, como se o ministério não tivesse que pensar em tudo. Você está me obrigando a dizer coisas que não gostaria de dizer...

O sr. é partidário da tese de buscar desenvolvimento mantendo o máximo da floresta intacta...

Pensar um desenvolvimento com o máximo de floresta em pé significa o máximo de biodiversidade conservada e in situ. Do chão até o dossel. Passei pelo Estreito de Breves (no Pará), numa das caravanas da cidadania (organizadas pelo então candidato do PT Luiz Inácio Lula da Silva), quando meditei muito sobre meu País - foi inútil, aparentemente. Passei numa madeireira na região e estavam desenrolando troncos gigantes para fazer placas e vender para o exterior. Fui num estacionamento, no fundo, e comecei a olhar os cortes dos troncos pensando em quantos anos levaram para crescer aquelas árvores. Uma delas tinha 1 metro e 65 centímetros de diâmetro. Aí comecei a contar os anéis de crescimento e tive de parar. Ia dar uns 500, 600 anos. E há brasileiros que dizem "pode cortar uma árvore se plantar uma outra". Estamos no campo da ignorância.

Como estudioso da Amazônia e professor, que nota daria ao governo Lula na questão ambiental?

Olha, não quero ferir a dona Marina e não quero ferir o governo Lula, mas é claro que a nota é muito baixa.

O sr. já propôs saídas para a Amazônia para este governo?

Fiz um zoneamento da Amazônia em 23 células espaciais, sugerindo ao governo que fizesse uma reunião em Brasília para encontrar um método de estudo para cada uma dessas regiões e entender a situação delas em termos das poucas atividades urbanas, das que têm verdadeiras capitais regionais funcionando mais para os madeireiros do que para qualquer outra coisa, das doenças tropicais e das locações de cada célula espacial. Enviei uma carta ao presidente Lula logo que foi eleito. Nenhuma resposta.

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