Ninguém é santinho...

...E você tinha alguma dúvida disso.

Folha de S. Paulo

O caixa-dois da reeleição

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Surgiu uma boa explicação para a implicância do alto tucanato com a idéia do financiamento público das campanhas políticas. Está na Folha de hoje.

A reeleição de FHC, que já ofendera os costumes no varejo da compra de votos no Congresso, foi lubrificada por um caixa-dois. Para cada R$ 5 arrecadados no oficial, pingou R$ 1 no paralelo.

Choveram pelo menos R$ 10,120 milhões do lado de fora da contabilidade levada pelo PSDB ao TSE. Deve-se aos repórteres Andréa Michael e Wladimir Gramacho a revelação dos arquivos eletrônicos do comitê reeleitoral de FHC.

Desde o estouro dos computadores da firma EPC, em cuja memória PC Farias enterrava os cifrões que logrou arrebanhar, não se tinha notícia de material tão útil ao estudo do submundo financeiro de uma campanha no Brasil.

As planilhas digitais do tucanato registram um conjunto impressionante de dados: além de valores, os documentos trazem anotações variadas -nomes de doadores e de arrecadadores, por exemplo.

Há muito o que investigar. Isso, evidentemente, se houver interesse em seguir a trilha dos vestígios.

Ainda que se fique apenas no constrangimento, em honra à tradição de empurrar assuntos como esse para baixo do grande tapete nacional, algo muito desagradável irá ocorrer: uma nova nódoa grudará na biografia de FHC.Pela lei, o cabeça de chapa é o responsável final pela escrituração de campanha. Assim, conhecendo ou não a numeralha de seu comitê (admita-se que não conhecesse), o presidente não fica em posição confortável.As planilhas do tucanato não poderiam ter escolhido momento mais oportuno para começar a falar. Discute-se em Brasília a reforma política.

Pelo lado do governo, quem conduz a negociação é Marco Maciel. Na condição de vice-presidente da República, ele é responsável solidário pela prestação de contas carunchada que aportou no TSE.

A proposta do financiamento público das eleições foi levada à mesa pelo PT. O Palácio do Planalto torceu o nariz para a idéia. A exposição da contabilidade paralela talvez leve o governo a refletir melhor. Quem sabe FHC se anime agora a adotar um discurso vigoroso em favor da moralização das campanhas. Como, aliás, era comum antes de ter virado presidente.

O uso de dois tipos de dinheiro na eleição -o com recibo, à luz do dia, e o sem recibo, à sombra- é prática disseminada entre os políticos. Historicamente, os partidos fingem que prestam contas ao TSE e o tribunal finge que as audita.Passa da hora de mudar o enredo desse samba. De resto, a fantasia de coelho cego à caça de cenouras no deserto não combina com o corte clássico das togas da Justiça Eleitoral.

Antes de abrir a bolsa da Viúva aos candidatos, é preciso montar um esquema de fiscalização que possa ser levado a sério. O pior que poderia acontecer seria a instituição de um sistema de financiamento misto. Algo que introduza o dinheiro do contribuinte na roda das campanhas, sem pôr fim às doações espúrias. Trocaríamos o ruim pelo impensável.

O fenômeno do caixa-dois não é exclusividade do Brasil. A diferença é que, em outras plagas, a divulgação de uma caixinha secreta pode fazer ruir mesmo as reputações mais festejadas. A do alemão Helmut Kohl, por exemplo.

Se FHC não tivesse lançado o próprio currículo no vale-tudo da reeleição, talvez até já tivesse assegurado um bom verbete na enciclopédia. Teria feito a desvalorização cambial no tempo próprio, antes que a Tailândia fosse à breca, em 1997. E teria preparado o terreno para que o sucessor levasse as principais estatais ao martelo sem os atropelos que conduziram o seu governo ao "limite da irresponsabilidade".

Sabia-se que o desejo do professor Cardoso de demorar-se no Palácio do Planalto além da conta lhe custaria algo. Poucos imaginaram que a fatura seria tão alta.

Outro assunto: o STF decidiu, na última quinta-feira, acomodar no colo da Justiça Eleitoral de São Paulo o processo referente ao chamado dossiê Caribe. Nele, FHC pede a condenação, por calúnia e difamação, de Paulo Maluf, Lafaiete Coutinho e Caio Fábio. Acusa-os de terem difundido uma mentira: a de que, junto com Serra, Covas e Serjão, manteria uma conta bancária de US$ 368 milhões em Cayman.

O promotor que vier a se ocupar do caso terá diante de si duas alternativas: ou dá curso automático ao processo de calúnia, ou pede a reabertura das investigações da PF, interrompidas quando o presidente optou por impetrar a ação judicial. Os advogados de Caio Fábio convocarão o cliente para uma reunião. Querem saber se tem algo mais a dizer sobre o assunto além de palavras vãs.

Planilha eletrônica obtida pela Folha informa que R$ 10,120 milhões não foram declarados ao TSEDocumento secreto revela doações não registradas para campanha de FHC

ANDRÉA MICHAEL WLADIMIR GRAMACHO

DA SUCURSAL DE BRASÍLIA


Planilhas eletrônicas sigilosas do comitê eleitoral de Fernando Henrique Cardoso revelam que sua campanha pela reeleição, em 1998, foi abastecida por um caixa-dois, expediente ilegal. Pelo menos R$ 10,120 milhões deixaram de ser declarados ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral).

Os documentos trazem à tona, pela primeira vez, detalhes do subterrâneo financeiro da campanha presidencial. Ali, descobre-se que R$ 1 em cada R$ 5 arrecadados foi parar numa contabilidade paralela, cujo destino final ainda é desconhecido.

A leitura dessas planilhas também desvenda um poderoso esquema de arrecadação de fundos. Um grupo de alto nível -composto pelo hoje ministro Andrea Matarazzo (Secretaria de Comunicação), pelo empresário Eduardo Eugênio Gouvêa Vieira (Ipiranga) e pela banqueira Kati Almeida Braga (Icatu), entre outros- visitava empresários e negociava doações.

Nos bastidores, o trabalho era reforçado por pessoas ligadas ao ex-secretário presidencial Eduardo Jorge Caldas Pereira. Entre elas: Jair Bilachi (ex-presidente da Previ), Pedro Pereira de Freitas (presidente da Caixa Seguros) e Mário Petrelli (ex-sócio de EJ).As planilhas foram criadas por Sérgio Luiz Gonçalves Pereira. Serviam para sistematizar informações obtidas por seu irmão, o ex-ministro Luiz Carlos Bresser Pereira, presidente do comitê financeiro de FHC nas duas campanhas presidenciais (1994 e 1998).Procurado pela Folha, Bresser admitiu haver utilizado planilhas para organizar a contabilidade da campanha. Mas disse tê-las jogado fora e não se lembrar exatamente de seu conteúdo.

O ex-ministro, no entanto, negou a autoria da principal e mais completa planilha, que faz parte de oito arquivos obtidos pelo Ministério Público durante as investigações sobre o caso EJ. A Folha tem cópia dos documentos.

Os recursos não declarados ao TSE estão descritos em 34 registros existentes na planilha principal. Eles indicam que o comitê financeiro de FHC recebeu pelo menos R$ 53,120 milhões.

É mais do que os R$ 43 milhões declarados oficialmente. Porém menos do que o limite de gastos fixado previamente pelo próprio comitê, de R$ 73 milhões, e informado ao TSE. Havia, portanto, margem de sobra para que todas as doações fossem declaradas -o que não foi feito.

Especialistas ouvidos pela Folha disseram que o uso de caixa-dois numa campanha eleitoral pode motivar ações por falsidade ideológica, corrupção eleitoral, sonegação fiscal e evasão de divisas.

Segundo o artigo 21 da Lei Eleitoral (9.504/97), "o candidato é o único responsável pela veracidade das informações financeiras e contábeis de sua campanha".

A soma de R$ 10,120 milhões no caixa-dois da reeleição é um cálculo conservador. Deixa de fora outros R$ 4,726 milhões, doados por empresas que constam da lista do TSE, só que com valores menores do que os da planilha mais completa. Ou ainda por um grupo de empreiteiras cujos valores foram lançados nessa planilha sob a rubrica de uma associação de classe.

Nos últimos dois meses, a Folha procurou uma centena de executivos e empresários. A maioria deles não quis falar abertamente sobre o assunto. Mas, em 14 conversas, 11 delas gravadas, pessoas que estavam dos dois lados do balcão, arrecadando fundos ou doando recursos para a reeleição, comprovaram a veracidade das planilhas montadas por Sérgio Pereira e utilizadas por seu irmão.

Ministro Andrea Matarazzo doou R$ 3 milhões para a contabilidade paralela, segundo documento

Além de Bresser, dois executivos tinham a chave do cofre da campanha: Egydio Bianchi e Adroaldo Wolf. Sob o compromisso de que não tivesse seu nome revelado, um deles confirmou à Folha que parte das doações não foi declarada ao TSE.

"Dizer que não há doações que não passam pelo oficial não tem cabimento. Mas o grosso está na contabilidade. Se algo ficou de fora, foi marginal", minimizou o tucano. O executivo, porém, negou-se a quantificar com objetividade esses recursos paralelos.A principal planilha obtida pela Folha tem data de 30 de setembro de 1998, portanto quatro dias antes da reeleição do presidente. Na ocasião, a contabilidade de Bresser ainda não havia registrado todas as contribuições feitas à campanha eleitoral de FHC.

Outras doações, no valor de R$ 8,2 milhões, foram feitas nos dias subsequentes à eleição, o que também contraria a lei. É provável que exista uma planilha mais atual, com a contabilidade final da campanha, à qual o jornal não teve acesso.A tabela obtida pela Folha totaliza R$ 39,521 milhões em doações: parte confere integralmente com o que está no TSE (R$ 15,224 milhões), outra apenas parcialmente (R$ 14,177 milhões) e uma terceira não consta da declaração oficial (R$ 10,120 milhões).

Os responsáveis por este último valor apresentaram à Folha explicações oblíquas e contradições a respeito do que está escrito no documento. Em comum, apenas o desconforto ao tratar de um tema que virou tabu na política brasileira.

O publicitário Roberto Duailibi, da agência DPZ, por exemplo, entrou em contradição ao falar sobre as doações feitas por sua empresa. A principal planilha informa que a DPZ contribuiu com R$ 200 mil.

Em três conversas com a Folha, Duailibi começou com uma afirmação categórica: "Colaboramos dentro dos parâmetros da lei". Numa segunda conversa, mesmo não confirmando o dado da planilha, foi específico: "Foram R$ 7.500, naquele sistema normal de partido (recibos eleitorais)". Por fim, ao saber que isso não estava no TSE, ligou para o jornal e recuou: "Nós não contribuímos".O empresário Geraldo Alonso, da agência Publicis Norton, disse que não deu dinheiro para o comitê, mas admitiu haver prestado serviços de publicidade. Exatamente o que informa a planilha, segundo a qual esse trabalho teria sido avaliado em R$ 50 mil.Mais tarde, Alonso também procurou a Folha para negar a doação. "Acho que a vontade de prestar serviços era grande. Mas nós não prestamos", disse ele, ao justificar a negativa.

Nem todos os envolvidos negaram doações que escapam aos registros do TSE. A banqueira Kati Almeida Braga (Icatu), que também ajudou a coletar fundos, admite que uma de suas empresas, a Atlântica Empreendimentos Imobiliários, contribuiu para a reeleição. Segundo a planilha, foram R$ 100 mil. O comitê financeiro não registrou essa doação na contabilidade oficial.Kati negou-se a dar entrevistas. Apenas enviou ao jornal documentos provando que tem recibo eleitoral do PSDB e que, portanto, está quite com a lei. Implicitamente, atribuiu a falha ao partido de FHC.

De Belém, o presidente da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES), Edson Franco, conta como as universidades foram atraídas para a campanha.

"Fui procurado pelo ex-ministro Bresser Pereira e sei que várias instituições contribuíram. A (Faculdade) Anhembi-Morumbi contribuiu, com certeza. Se não estou enganado, a Universidade Ibirapuera e a Unip, do (João Carlos) Di Gênio, também", disse Edson Franco. Nenhuma delas está no TSE.

Reitor da Universidade da Amazônia (Unama), Franco negou que a instituição tivesse doado R$ 20 mil, como informa a planilha. Quem doou R$ 20 mil foi a ABMES, o que foi considerado ilegal pelo TSE. Ainda assim, o reitor dá outras pistas sobre contribuições paralelas.

"Eu investiguei o negócio. A contribuição foi de R$ 10 mil, dada por cinco pessoas da Unama, cada uma com R$ 2.000. Foram Paulo Batista, Graça Landeira, Antônio Vaz e não sei os outros dois", relatou Franco. O TSE também não tem registro de nenhum deles.

A empresária Nely Jafet, irmã do ex-prefeito Paulo Maluf, só doou para a campanha sob a condição expressa de que a contribuição -R$ 50 mil, segundo a planilha -fosse para o caixa-dois.

"Dei uma contribuição pequena. Não lembro de quanto. Foi em dinheiro e pedi para não registrar (no TSE), porque eu não queria aparecer para que outros candidatos não começassem a pedir", justificou Nely Jafet, que tem relações cortadas com Maluf.

A maior doação não declarada ao TSE, de R$ 3 milhões, é atribuída pela planilha ao hoje ministro Andrea Matarazzo, da Secretaria de Comunicação da Presidência. Dinheiro sem procedência nem destino conhecidos, de acordo com o documento.

"Não pode ser. Não conheço a planilha. Não tenho idéia. Muito menos valores desse tamanho", reagiu Matarazzo. "Eu não fui arrecadador. Não me ponha como arrecadador. Fiz alguns jantares com empresários. E só", rebateu o ministro.

Seus colegas de campanha dizem coisa diferente. "O Andrea também foi (arrecadador), no começo", lembra Bresser. "Havia uma certa competição, talvez em função da vontade dele de ir para Brasília", conta o publicitário Luiz Fernando Furquim, outro coletor.No Rio de Janeiro, Kati Almeida Braga procurou 18 empresários para recolher doações. No périplo, bateu à porta da Sacre, onde obteve R$ 50 mil para FHC. Contou com a simpatia do banqueiro foragido Salvatore Alberto Cacciola, dono da empresa.

Até mesmo Wagner Canhedo (Vasp) -que deve R$ 3 bilhões -foi procurado. A contribuição dada pelo empresário, de R$ 150 mil, não tem registro no TSE. A assessoria de Canhedo confirmou a doação, mas não precisou o valor.

Apesar da soma expressiva recolhida pelo grupo de Bresser -mais da metade dos R$ 43 milhões declarados ao TSE-, a tarefa não foi fácil. Nada menos que 309 dos contatados frustraram o assédio.

Dentre as doações obtidas a fórceps, porém, nenhuma se compara à da Coteminas, indústria têxtil que pertence ao senador José Alencar (PMDB-MG).

A empresa vendeu 2,1 milhões de camisetas aos tucanos e, por causa delas, amargou uma dívida de R$ 3 milhões, ainda não quitada. Para fechar o negócio, a Coteminas foi instada a entregar como doação outras 415 mil peças e a distribuí-las de acordo com indicações da campanha. Algo avaliado em R$ 589 mil, registrado pela empresa em notas de doação e que deveria ter sido, obrigatoriamente, declarado ao TSE. Mas não foi.

O empresário Josué Gomes, vice-presidente da Coteminas e filho do senador, não só reconhece a doação como reclama a falta dos recibos eleitorais. "Para minha surpresa, não recebemos os bônus (recibos). Você faz a doação, mas o partido é que é responsável pela entrega dos bônus", disse Gomes. Agora, ele sabe que não é o único doador que o comitê de FHC deixou sem recibo.

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