A exceção brasileira
Demétrio Magnoli e Flávia Piovesan *
Eles nunca sabem. Diante do processo da Justiça italiana que lança nova luz sobre a Operação Condor, Jarbas Passarinho, coronel reformado e ministro de três governos da ditadura militar, reiterou um álibi ritual: “Se soubesse que, mandando para a Argentina, a pessoa ia ser morta, tenho a convicção de que o governo não mandaria.” A alegação de ignorância não exclui a justificação do crime de Estado. “O que parece ridículo são as pessoas que dizem que não podia extraditar senão de acordo com a lei. A gente estava numa guerra! Uma guerra não declarada”, é a justificativa brandida por George W. Bush para a rede de centros de tortura offshore que os EUA criaram após o 11 de setembro de 2001.
A Justiça italiana determinou a prisão preventiva de 146 sul-americanos, dentre eles 13 brasileiros, em razão do desaparecimento de dois ítalo-argentinos em 1980, ilegalmente presos no Brasil, enviados à Argentina e desde então nunca mais vistos. A acusação compreende a prática de assassinatos, seqüestros e torturas, sob o manto da Operação Condor, uma rede internacional que articulava ações repressivas das ditaduras do Cone Sul nas décadas de 70 e 80. O Brasil tem a obrigação legal e moral de extraditar os acusados ou processá-los no País.
Não é o que pensam os ministros da Justiça, Tarso Genro, e da Defesa, Nelson Jobim. O primeiro mencionou a prescrição dos crimes e a vigência da Lei de Anistia para sugerir que o passado permanecerá enterrado sob a lápide do esquecimento. O segundo descartou as hipóteses de extradição dos brasileiros e de abertura de processo no Brasil. Em nome de conveniências políticas inconfessáveis, eles fingem ignorar que o Brasil é signatário de tratados internacionais com força jurídica vinculante.
A Convenção contra a Tortura, ratificada pelo Brasil e elevada, no plano internacional, a jus cogens (norma cogente e inderrogável), além de ter força de costume internacional, estabelece que a tortura, por sua gravidade, é um crime internacional. A convenção impõe aos Estados-partes o dever de investigar, processar e punir a prática da tortura. Não há qualquer possibilidade de derrogar a proibição da tortura: nenhuma circunstância excepcional, seja qual for (estado de guerra, instabilidade política interna ou emergência pública), pode ser invocada como justificativa para a tortura. A tortura é crime de lesa-humanidade, considerado imprescritível pela ordem internacional.
Genro e Jobim interpretam a Lei de Anistia, de 1979, como um instrumento que anistiou o crime imprescritível de tortura. O ministro Paulo Vannuchi, da Secretaria dos Direitos Humanos, lembrou que essa é uma interpretação legal contestável e que o STF jamais teve a oportunidade de se pronunciar sobre o tema. Mas, sobretudo, registrou o óbvio: o seqüestro dos ítalo-argentinos ocorreu em 1980, o que o coloca fora do âmbito temporal da Lei de Anistia.
Jobim, ex-presidente do STF, não perdeu o hábito de vestir suas opiniões políticas com os andrajos de uma suposta norma jurídica. Afirmou que “a Itália não pode decidir sobre coisas que aconteceram no Brasil” e que “o Executivo não tem nada a ver com isso”. Tudo errado. A Convenção contra a Tortura, nos artigos 5º a 8º, estabelece a chamada jurisdição compulsória e universal. Compulsória porque obriga os Estados-partes a processar e punir os torturadores, independentemente do território onde a violação tenha ocorrido e da nacionalidade do violador e da vítima. Universal porque o Estado-parte onde se encontra o suspeito deve processá-lo ou extraditá-lo para outro Estado-parte que o solicite e tenha o direito de fazê-lo, mesmo sem acordo prévio bilateral sobre extradição.
Diversamente da Operação Condor, que se movia no plano da “extradição ilegal” das vítimas de tortura, a partir de uma ilícita cooperação internacional entre os serviços secretos das ditaduras sul-americanas, a Convenção contra a Tortura autoriza a extradição legal de acusados de tortura, a partir de uma cooperação entre Estados democráticos, com base no princípio da complementaridade horizontal de suas jurisdições nacionais. Mas para cumprir suas obrigações internacionais o Brasil não precisa extraditar ninguém. Basta seguir o exemplo do Chile e da Argentina, que, diante das solicitações da Justiça espanhola de extradição de Augusto Pinochet e de chefes militares argentinos, decidiram processá-los por meio de suas próprias instituições.
A decisão judicial italiana, que logo será reforçada pela Justiça espanhola, evidencia que o Brasil é o único país do Cone Sul a não investigar os crimes de repressão cometidos ao longo da ditadura militar. Ela desvela uma dimensão sombria de nossa História recente e oferece à Nação a oportunidade de avançar na defesa dos direitos à justiça, à verdade e à memória coletiva. Sua mera divulgação já contribuiu para desvendar parte das responsabilidades pela Operação Condor. Em 30 de dezembro, um general da reserva, integrante do Estado-Maior do II Exército nos anos 70, admitiu que o Exército brasileiro prendeu militantes latino-americanos e os entregou a militares argentinos. Formulando a versão que seria repetida por Jarbas Passarinho, ele esboçou uma confissão: “A gente não matava. Prendia e entregava.”
Entretanto, Jobim e Genro parecem pretendem incrustar em pedra a vergonhosa exceção brasileira: segundo ambos, por algum motivo mágico, a Convenção contra a Tortura não pode ser aplicada nem a crimes cometidos após a Lei de Anistia. No lugar da investigação judicial dos crimes cometidos por um Estado fora-da-lei, os dois ministros oferecem à sociedade um discurso quase jurídico que vale como uma renúncia à palavra solene empenhada em tratados internacionais. Não extraditar os acusados e não tomar a iniciativa de processá-los significa converter o Brasil em santuário eterno para os chefes e agentes da internacional da tortura que conduziram a Operação Condor. É isso mesmo que quer o governo?
* Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP (demetrio.magnoli@terra.com.br), Flávia Piovesan, professora de Direito Constitucional e Direitos Humanos da PUC-SP, é procuradora do Estado de São Paulo
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