Artigo Lei da Anistia
Passado é como diamante
Luiz Carlos Azedo
Uma “anistia ampla, geral e irrestrita” – palavra de ordem de toda a oposição –, para ser aceita pelos militares, deveria incluir o perdão a seqüestradores, torturadores e assassinos
A maior proeza do baiano Giocondo Gerbasi Alves Dias, o “Cabo Dias” (1913-1987), foi liderar um levante militar e tomar o poder em Natal (RN), por três dias, durante a chamada Intentona Comunista de 1935. Desde então, nunca mais parou de conspirar. Seguidor do líder comunista Luiz Carlos Prestes, de cuja segurança pessoal cuidou anos a fio, na década de 1950, se tornou o principal organizador e segundo homem do Partido Comunista Brasileiro. Foi um dos líderes políticos mais importantes e perseguidos da história republicana.
Nos anos 1970, o PCB passou por momentos dramáticos: muitos dirigentes haviam sido seqüestrados pelos órgãos de segurança, 12 dos quais “desaparecidos”. Um deles é Orlando Bonfim Junior, seqüestrado pouco antes de um encontro com “Neves”, nome de guerra de Giocondo. O velho e clandestino Partidão nunca esteve tão vulnerável, com milhares de militantes presos e centenas de dirigentes desorientados, tentando fugir para o exterior. “Viver e lutar”, dizia o editoral de Bonfim, na última Voz Operária editada no Brasil, em março de 1975. Isolado de seus companheiros, Giocondo se refugiou num velho “aparelho” de Volta Redonda (RJ), que só um homem seria capaz de localizar: Armênio Guedes, outro “capa-preta” do Partidão, que estava em Paris. De lá comandou a operação clandestina na qual “Neves” foi resgatado do Brasil e levado a Moscou.
Nessa época, o líder da campanha pela anistia no Brasil era o general Pery Bevilacqua, ex-membro do Superior Tribunal Militar (STM), que havia sido cassado por seus colegas de farda por se opor ao golpe de 1964. Ele fundou o Comitê Brasileiro da Anistia (CBA), para onde afluíram os parentes dos oposicionistas banidos, exilados, presos e desaparecidos. Remanescentes de todas as organizações de esquerda que haviam participado da luta armada contra o regime integravam o CBA, que defendia melhores condições carcerárias e denunciava os seqüestros, prisões, torturas e assassinatos de oposicionistas. O general não era de esquerda, era positivista e legalista. Por isso mesmo, ele sabia que uma “anistia ampla, geral e irrestrita” – palavra de ordem de toda a oposição –, para ser aceita pelos militares, deveria incluir o perdão a seqüestradores, torturadores e assassinos. A “conciliação” é uma tradição política brasileira.
Quando houve a anistia, Prestes encarou-a com desconfiança. Imaginava que era uma armadilha para desarticular a oposição, cuja atuação no exterior levara o regime militar ao isolamento internacional, enquanto, no interior do país, promovia greves maciças de trabalhadores, grandes manifestações estudantis e vitórias eleitorais retumbantes da oposição. Ao contrário, Giocondo enxergava na anistia uma mudança política que resultaria na derrocada do regime militar. Não era, como temia Prestes, uma nova “Macedada”, episódio no qual o ex-ministro da Justiça José Carlos Macedo Soares, em 1937, libertou cerca de 400 presos políticos sem processo, para logo depois o governo Vargas implantar o Estado Novo.
O Comitê Central fechou com Giocondo. A maioria resolveu aceitar o acordo da oposição com o general Figueiredo e voltar para o Brasil, mas Prestes, o legendário líder comunista da América Latina, nunca mais compareceu às reuniões do Comitê Central. Quando se convenceu de que poderia voltar ao Brasil, anunciou que o fazia como simples cidadão. Era o rompimento velado com o PCB, cujo comando havia perdido para Giocondo e outros veteranos de 35, como Dinarco Reis, Almir Neves e Teodoro Melo (ainda vivo).
Toda a esquerda brasileira se beneficiou da anistia, porém uma parte nunca aceitou a reciprocidade com relação aos militares que atuaram na repressão política. Da mesma forma como não votou a favor da eleição de Tancredo Neves no colégio eleitoral, não reconheceu o papel do ex-presidente José Sarney na transição à democracia e não endossou a Constituição de 1988. Ao longo dos anos, alimentou o desejo de um ajuste de contas com os torturadores e ainda vive em escaramuças com os militares na Comissão de Anistia. O ministro da Justiça, Tarso Genro, já fez parte desses setores e de vez em quando tem suas recaídas. Agora, ingenuamente, resolveu propor a mudança da Lei da Anistia para punir os torturadores e assassinos do regime militar e provocou uma onda de indignação nos quartéis. Não respeitou o histórico acordo referendado no Congresso com a aprovação da Lei da Anistia, que acelerou a democratização do país e a volta dos militares à caserna. Romper esse acordo é chamar os militares de volta à luta política, daí porque o ministro da Defesa, Nelson Jobim, que acompanhou todo o debate da anistia e já presidiu o Supremo Tribunal Federal, fez muito bem em dar um chega prá lá no seu colega de Esplanada. Como dizia o Cabo Dias, “passado é como diamante, ninguém joga fora”. Afinal, a esquerda também cometeu seus “crimes de guerra” durante a luta armada.
Luiz Carlos Azedo
Uma “anistia ampla, geral e irrestrita” – palavra de ordem de toda a oposição –, para ser aceita pelos militares, deveria incluir o perdão a seqüestradores, torturadores e assassinos
A maior proeza do baiano Giocondo Gerbasi Alves Dias, o “Cabo Dias” (1913-1987), foi liderar um levante militar e tomar o poder em Natal (RN), por três dias, durante a chamada Intentona Comunista de 1935. Desde então, nunca mais parou de conspirar. Seguidor do líder comunista Luiz Carlos Prestes, de cuja segurança pessoal cuidou anos a fio, na década de 1950, se tornou o principal organizador e segundo homem do Partido Comunista Brasileiro. Foi um dos líderes políticos mais importantes e perseguidos da história republicana.
Nos anos 1970, o PCB passou por momentos dramáticos: muitos dirigentes haviam sido seqüestrados pelos órgãos de segurança, 12 dos quais “desaparecidos”. Um deles é Orlando Bonfim Junior, seqüestrado pouco antes de um encontro com “Neves”, nome de guerra de Giocondo. O velho e clandestino Partidão nunca esteve tão vulnerável, com milhares de militantes presos e centenas de dirigentes desorientados, tentando fugir para o exterior. “Viver e lutar”, dizia o editoral de Bonfim, na última Voz Operária editada no Brasil, em março de 1975. Isolado de seus companheiros, Giocondo se refugiou num velho “aparelho” de Volta Redonda (RJ), que só um homem seria capaz de localizar: Armênio Guedes, outro “capa-preta” do Partidão, que estava em Paris. De lá comandou a operação clandestina na qual “Neves” foi resgatado do Brasil e levado a Moscou.
Nessa época, o líder da campanha pela anistia no Brasil era o general Pery Bevilacqua, ex-membro do Superior Tribunal Militar (STM), que havia sido cassado por seus colegas de farda por se opor ao golpe de 1964. Ele fundou o Comitê Brasileiro da Anistia (CBA), para onde afluíram os parentes dos oposicionistas banidos, exilados, presos e desaparecidos. Remanescentes de todas as organizações de esquerda que haviam participado da luta armada contra o regime integravam o CBA, que defendia melhores condições carcerárias e denunciava os seqüestros, prisões, torturas e assassinatos de oposicionistas. O general não era de esquerda, era positivista e legalista. Por isso mesmo, ele sabia que uma “anistia ampla, geral e irrestrita” – palavra de ordem de toda a oposição –, para ser aceita pelos militares, deveria incluir o perdão a seqüestradores, torturadores e assassinos. A “conciliação” é uma tradição política brasileira.
Quando houve a anistia, Prestes encarou-a com desconfiança. Imaginava que era uma armadilha para desarticular a oposição, cuja atuação no exterior levara o regime militar ao isolamento internacional, enquanto, no interior do país, promovia greves maciças de trabalhadores, grandes manifestações estudantis e vitórias eleitorais retumbantes da oposição. Ao contrário, Giocondo enxergava na anistia uma mudança política que resultaria na derrocada do regime militar. Não era, como temia Prestes, uma nova “Macedada”, episódio no qual o ex-ministro da Justiça José Carlos Macedo Soares, em 1937, libertou cerca de 400 presos políticos sem processo, para logo depois o governo Vargas implantar o Estado Novo.
O Comitê Central fechou com Giocondo. A maioria resolveu aceitar o acordo da oposição com o general Figueiredo e voltar para o Brasil, mas Prestes, o legendário líder comunista da América Latina, nunca mais compareceu às reuniões do Comitê Central. Quando se convenceu de que poderia voltar ao Brasil, anunciou que o fazia como simples cidadão. Era o rompimento velado com o PCB, cujo comando havia perdido para Giocondo e outros veteranos de 35, como Dinarco Reis, Almir Neves e Teodoro Melo (ainda vivo).
Toda a esquerda brasileira se beneficiou da anistia, porém uma parte nunca aceitou a reciprocidade com relação aos militares que atuaram na repressão política. Da mesma forma como não votou a favor da eleição de Tancredo Neves no colégio eleitoral, não reconheceu o papel do ex-presidente José Sarney na transição à democracia e não endossou a Constituição de 1988. Ao longo dos anos, alimentou o desejo de um ajuste de contas com os torturadores e ainda vive em escaramuças com os militares na Comissão de Anistia. O ministro da Justiça, Tarso Genro, já fez parte desses setores e de vez em quando tem suas recaídas. Agora, ingenuamente, resolveu propor a mudança da Lei da Anistia para punir os torturadores e assassinos do regime militar e provocou uma onda de indignação nos quartéis. Não respeitou o histórico acordo referendado no Congresso com a aprovação da Lei da Anistia, que acelerou a democratização do país e a volta dos militares à caserna. Romper esse acordo é chamar os militares de volta à luta política, daí porque o ministro da Defesa, Nelson Jobim, que acompanhou todo o debate da anistia e já presidiu o Supremo Tribunal Federal, fez muito bem em dar um chega prá lá no seu colega de Esplanada. Como dizia o Cabo Dias, “passado é como diamante, ninguém joga fora”. Afinal, a esquerda também cometeu seus “crimes de guerra” durante a luta armada.
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