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SOY LATINOAMERICANO
Foto: Altino Machado
Os debatedores: Bessa Freire e o poeta Thiago de M
Por José Ribamar Bessa Freire
O tema era a solidariedade entre os povos da América. O lugar: o Teatro Banzeiros, em Porto Velho (RO), lotado por universitários, professores, ambientalistas, gente da comunidade e, sobretudo, estudantes secundaristas. Os debatedores: o poeta Thiago de Mello, o engenheiro florestal peruano Jhon Yuri e esse locutor que vos fala, os três participantes de uma mesa coordenada anteontem pelo historiador Marco Teixeira, autor de pesquisas sobre os quilombolas.
Pensei em fazer um discurso paletó-e-gravata, com direito à definição prévia do conceito de solidariedade. Ainda bem que desisti. Ninguém deu conferência. O tom foi coloquial, de bate-papo, quase saudosista. Aproveitamos para jogar conversa fora diante de uma platéia que reverenciou o poeta da floresta, o grande homenageado. Lembrei que foi com ele, Thiago, que aprendi a conhecer e a amar a América Latina, depois de juntos atravessarmos a pé a fronteira do Uruguai, em 1969, fugindo da polícia.
Los hermanos
Recordamos algumas histórias vividas no exílio. Do Uruguai, pátria do cantor Viglietti, passamos correndinho pela Argentina, onde os militares sufocavam o tango. No Chile, testemunhamos a vitória de Allende, embriagados pela música de Violeta Parra. No Peru, os huainitos, la flor de la canela e um cavalheiro de fina estampa. Quando entrei na Bolívia, levava carta de Thiago para seu amigo Augusto Céspedes, autor de ‘Metal del Diablo’.
Estão vivos sons, cheiros e cores dessas pátrias por onde andamos e que solidariamente nos abrigaram. Música, poesia, literatura, política, y por supuesto, culinária. Nesse tempo de exílio com Thiago – um maravilhoso narrador – ouvi suas histórias do convívio com escritores, intelectuais e músicos de cada país. Vivenciei outras. Contamos algumas delas ao público.
Quando chegamos ao Chile, no final de 1969, Thiago me levou à Peña de los Parra, onde Angel e Isabel Parra se apresentavam todas as noites. O último encontro do poeta amazonense com os dois chilenos havia sido anterior ao suicídio de Violeta, a mãe deles. Precisavam acertar os ponteiros da memória. No camarim, antes do espetáculo, o poeta apontou pra mim e disse aos seus amigos: - Esse caboco gosta muito da música de vocês.
Foi então que Isabel me pediu para acompanhá-la até a bilheteria. Lá, disse para uma gordinha charmosa que vendia as entradas:
- Olha bem pra cara dele. Gravou? Ele pode entrar aqui, sem pagar, todas as vezes que quiser.
A gordinha gravou. Não preciso dizer que usei e abusei do passe livre. O repertório dos irmãos Parra incluía música de diferentes países. Aprendi todas. Cantei muitas delas, recentemente, nas noitadas musicais realizadas durante um curso que dei em Santa Cruz de la Sierra para funcionários bolivianos da Petrobrás. Um engenheiro que tocava violão me fez um elogio:
- Nascer em um país da América Latina não basta para ser latinoamericano. É preciso se impregnar deles. Você conseguiu.
No debate, lembramos Darcy Ribeiro, que deplorava o fato de o Brasil viver sempre de costas para os seus vizinhos, situação que, no dizer de Darcy, foi mudada – quanta ironia da história! - pelo golpe militar de 1964, responsável pelo exílio de milhares de brasileiros nos países hermanos. A mesa redonda se encerrou com Thiago declamando os Estatutos do Homem, por solicitação do jornalista Altino Machado.
O Festival
O debate aqui relatado ocorreu dentro da programação do FestCineAmazônia – a sétima edição do Festival de Cinema e Vídeo Ambiental da Amazônia, realizada de 7 a 12 de dezembro, quando foi exibido o documentário “Uma só América – um caminho feito de muitos caminhos”, de Jurandir Costa, Fernanda Kopanakis e Carlos Lévi, criadores e organizadores do Festival.
O documentário revela os problemas enfrentados pela Pan-Amazônia na visão de um agrônomo boliviano, Abraham Imopoco Oni, que acompanhou a equipe do FestCineAmazônia por Rondônia, Peru, Bolívia e Colômbia. “Os rios que nos separam são os mesmos rios que nos unem” – declarou Abraham. O evento cumpre uma função social relevante, como assinalam seus organizadores:
- O Festival é, antes de tudo, um instrumento de discussão ambiental e da formação de uma nova consciência para reduzir os impactos da natureza. Viver sem agredir a natureza deixou de ser uma plataforma ambientalista e se tornou uma necessidade geral do Planeta. Em Rondônia, são sete anos de debates sobre a preservação do meio ambiente através da arte cinematográfica. É como se a terra fosse uma grande sala de cinema e a nossa região fosse a tela de projeção.
Dessa forma, Rondônia indica caminhos alternativos para esse tipo de evento. O eterno Secretário de Cultura do Amazonas, Berinho Braga, que promove a caricatura de um tal de Amazon Film Festival, levando para Manaus as “celebridades” do Big Brother Brasil, teria muito a aprender com o evento de Rondônia, que além de fazer parte do circuito nacional de festivais, promove o acesso ao cinema, pela primeira vez, de muitas comunidades carentes.
Consagrado como uma bandeira em defesa da natureza, o FestCineAmazônia desenvolveu um projeto inovador na inclusão cinematográfica, invertendo o conceito de público. Não se limita aos expectadores habituais, mas leva o cinema às pessoas que não tem acesso. Através da Mostra Paralela, filmes e vídeos são vistos por milhares de adultos, jovens e crianças, que lotam as salas alternativas em vários espaços: nos bairros periféricos, no circo, nos terreiros, nas escolas, no beiradão às margens do rio Madeira e em biroscas como o Bar do Chicão na comunidade Cachoeira do Teotônio.
Silêncio total
Tive a oportunidade de assistir duas projeções dessas. Uma no Centro de Umbanda de Mãe Marli, que exibiu o filme “Pierre Verger: Mensageiro entre dois mundos”, de Lula Buarque, com Gilberto Gil percorrendo os caminhos do fotógrafo francês. A outra, no loteamento Ayrton Sena, em lona armada num campinho de futebol. Lá se apresentou o palhaço Xuxu, personagem do ator Luiz Carlos Vasconcellos, que interpretou o médico Dráuzio Varela no filme Carandiru.
Durante a apresentação do palhaço Xuxu, que levou o público ao delírio, eu disse a Thiago, sentado ao meu lado:
- Isso é poesia pura. As fronteiras se esfumaçaram. O Xuxu, concorrente seu, é um grande poeta e você um grande palhaço.
Luiz Carlos deu também uma das três oficinas do Festival, intitulada “Técnicas de Palhaço”. As outras duas foram Curso Prático de Roteiro, ministrada por Humberto Oliveira, e Processo de Realização Cinematográfica, a cargo do cineasta Marcus Villar.
O júri assistiu a mais de 250 filmes e vídeos inscritos de vários estados do Brasil, selecionando 46 finalistas que concorreram à premiação do Festival. Foram exibidos ainda vários filmes, como Corumbiara, de Vincent Carelli, que documenta o massacre de índios por fazendeiros no sul de Rondônia, em 1980, e o filme Hotxuá, registro poético sobre os índios Krahô, dirigido por Leticia Sabatella e Gringo Cardia, projetado na cerimônia de encerramento.
Vincent Carelli, Letícia Sabatella, Stepan Nercessian e Chico Diaz foram os homenageados deste ano do FestCineAmazônia. Na sexta-feira, Thiago de Mello entregou o troféu a Stepan e ontem, sábado, no fechamento do Festival, o índio Krahô Ismael entregou o de Leticia Sabatella.
O Festival terminou, mas fiquei na minha cabeça com a música do chileno Paco Grondona, que – acreditem, há testemunhas – Thiago e eu cantamos a duas vozes na sexta feira, em pleno palco de um teatro de Porto Velho:
- Anda, preparándote a vivir, en América, tu América. Las riquezas, una nomás. La opresión, una nomás. Y la lengua, una nomás.
Fonte: Patria Latina.
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