O deputado federal Giovanni Queiroz (PDT-PA), apresentou no Plenário da Câmara dos Deputados, nesta quarta-feira, 7, uma proposta de emenda à Constituição que dá nova redação ao § 4º do art. 18 da Constituição, para restabelecer a competência dos Estados para legislar sobre criação, fusão, incorporação e desmembramento de Municípios. “Embora seja final de ano, entendo que é o momento de se fazer uma revisão no que foi modificado pela Emenda Constitucional nº 15, que alterou o § 4º do art. 18, no que diz respeito à criação de novos municípios”, justificou o parlamentar.
O deputado destacou que: “o Brasil há14 anos não consegue criar um Município, porque a Emenda nº 15, ao modificar e alterar a Constituição originária, de 1988, praticamente colocou uma legislação impeditiva de se criarem novos Municípios.” “Nós, do Estado do Pará, temos 144 Municípios. Temos que criar mais 80 Municípios, no mínimo. Compete ao Estado decidir sua organização geopolítica, e não a nós, no Congresso Nacional, ditando regras para os Estados brasileiros. É no mínimo um desrespeito à Federação”, defendeu Queiroz reportando-se à presidência da Mesa.
A Emenda Constitucional n° 15, de 13 de setembro de 1996, impôs obstáculos, até hoje insuperáveis, à criação de Municípios no Brasil e, assim fazendo, transferiu para limites próximos à ilegalidade a necessidade geopolítica e constitucional de estabelecer governos e administrações locais em inúmeros distritos e áreas do território nacional, tradicionalmente carentes da presença do poder público. É de surpreender que as modificações inseridas pela referida Emenda, especificamente no § 4° do art. 18 da Constituição Federal, tenham perdurado num País que, desde a inauguração de Brasília em 1960, intensifica a interiorização e ocupação do território de dimensões continentais de que somos dotados.
Para corrigir esta distorção e impedir que continue provocando danos ao País e ao seu futuro e, particularmente, ao Estado do Pará, é a razão que levou o parlamentar à apresentar o Projeto de Emenda à Constituição.
Ficou assinalado, na oportunidade, que as competências que se quer restabelecer sempre foram tradicionalmente delegadas aos Estados nos textos constitucionais brasileiros e que, embora confirmada pela Assembléia Nacional Constituinte que promulgou a Constituição de 1988, foi-lhe subtraída pela Emenda Constitucional n° 15, de 1996, que as transferiu para a União em sua quase totalidade.
A nova redação proposta para o § 4° do art. 18 da Constituição Federal reconstitui a redação aprovada pelo constituinte originário de 1988, com o objetivo de afastar ameaças que atualmente pairam sobre o princípio federativo, adotado e aperfeiçoado, desde a primeira Constituição republicana de 1891, em sucessivos textos constitucionais.
Se compararmos o texto modificado, em vigor, que se busca revogar, com a redação original do § 4° do art. 18 da Constituição Federal, que se pretende restaurar, podemos compreender o retrocesso institucional que, real e potencialmente, vem sendo patrocinado e inspirado pela Emenda Constitucional n° 15.
Antes de qualquer análise, é imperioso destacar que o texto modificado altera totalmente o conteúdo aprovado pelo constituinte originário e apresenta termos e frases imprecisas ou incompletas que geram dúvidas e dificuldades para sua interpretação e regulamentação.
Contrariando o princípio de autonomia dos Estados no que diz respeito à competência para legislar sobre assuntos de seu peculiar interesse, o texto constitucional modificado pela referida Emenda atribui-lhe apenas a elaboração de uma lei estadual que, embora afirme que seria através dela que far-se-ia a criação de Municípios, dependerá da aprovação de instrumentos legislativos e documentos federais de, pelo menos, quatro espécies:
1. uma lei complementar federal determinando o prazo para criação de municípios e não mais “uma lei complementar estadual estabelecendo requisitos mínimos” como estabeleceu o constituinte originário;
2. um decreto legislativo federal, como sugere a sua redação, convocando consulta plebiscitária às populações dos municípios “envolvidos” e não um decreto legislativo estadual convocando consulta plebiscitária “às populações diretamente interessadas”, conforme foi anteriormente estabelecido pelo constituinte originário;
3. um estudo de viabilidade municipal, prévio ao plebiscito, não exigido pelo constituinte originário nos documentos e discussões oriundos da Subcomissão dos Municípios e Regiões - parte da Comissão Temática da Organização do Estado na Assembléia Nacional Constituinte de 1987-88, -, ou nas inúmeras emendas que lhe foram apresentadas;
4. uma lei ordinária federal destinada a apresentar e divulgar o referido estudo de viabilidade municipal que também não foi citado pelo constituinte originário nem foi referência em quaisquer discussões ou documentos oriundos da Subcomissão dos Municípios e Regiões da Assembléia Nacional Constituinte de 1987/88.
Evidencia-se, portanto, que a Emenda Constitucional n° 15, de 1996, por algum motivo que não cabe aqui investigar, “desconhece” todo o trabalho do que foi considerado o mais importante fórum de debates da Assembléia Nacional Constituinte - a Comissão Temática da Organização do Estado. Considerando que foi nessa Comissão Temática que se aprofundaram os debates sobre a Federação brasileira, semelhante “desconhecimento” exige do Congresso Nacional iniciativas legislativas, como a que ora está sendo proposta, tendentes a reposicionar o debate sobre a natureza e o sentido do federalismo nacional.
À exceção do período em que vigorou a Carta Política do Estado Novo, entre 1937 e 1945, todas as constituições republicanas brasileiras incluíram dispositivos que consagraram os Estados como entes autônomos da Federação, a exemplo da Constituição de 1891 que, em seu art. 63, dispõe que cada Estado reger-se-á pela constituição e leis que adotar, respeitados os princípios constitucionais da União. E, no que diz respeito aos Municípios, a referida Constituição de 1891 dispõe, em seu art. 68 que “os Estados organizar-se-ão de forma que fique assegurada a autonomia dos Municípios em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse.
Entretanto, a autonomia municipal só iria adquirir as garantias para o seu exercício a partir da Constituição de 1934 que, pela primeira vez, dotou os Municípios de fontes de receitas próprias através da outorga de competências tributárias específicas, iniciativa que foi seguida e ampliada pelas Constituições de 1946 e 1967.
E, reforçando os lineamentos do nosso federalismo de descentralização, a atual Constituição de 1988 elevou o Município brasileiro ao patamar de entidade formativa e autônoma de nossa Federação que, juntamente com a União e os Estados, conforma o nosso federalismo trino e consolida o sentido que presidiu a evolução histórica de nossas instituições democráticas e republicanas.
Do esboço histórico realizado acima, é lícito concluir que o federalismo nacional tem um fio condutor de sua construção, presente desde o início da colonização, perdurando durante todo o processo de ocupação até o traçado definitivo das fronteiras territoriais brasileiras nas primeiras décadas do século passado. A natureza descentralizadora que presidiu a nossa formação histórica, ao lado do dinamismo geopolítico que lhe dá sentido, inspiram esta proposição legislativa, indispensável para fazer frente às atuais e recorrentes ameaças centralizadoras, de cunho autoritário e potencialmente desagregador do Brasil e de sua peculiar Federação.
As ameaças em referência estão claramente expressas no Parecer que aprovou, em Plenário da Câmara dos Deputados, a Proposta de Emenda à Constituição n.º 41, de 1991, que deu origem à Emenda Constitucional n° 15, de 1996. Na oportunidade, o Deputado Antônio Geraldo, designado Relator na Comissão Especial e em Plenário, defendeu a competência da União para arbitrar sobre a criação de Municípios, sob o argumento de que, após a sua elevação à condição de membro da Federação, o que se discute não é a divisão territorial, mas a aceitação, pela Federação, de um novo ente, um novo membro. E, a seguir, acrescenta em tom definitivo: ninguém se não a própria Federação pode dispor sobre a criação e a integração a si de um novo membro, como serão os Municípios em criação.
Depois de afirmar, em outro trecho de seu Parecer, que o objetivo da proposição em exame era aperfeiçoar a cláusula pétrea do constitucionalismo pátrio, representada na forma federativa de Estado, o Deputado Antônio Geraldo surpreende com esta frase absolutamente inadequada quando inserido num debate político-parlamentar sobre a forma federativa do Estado brasileiro: o aumento do número de Comunas (ou seja, de Municípios) só faz diminuir a fatia que a cada um toca, pois se é maior o número de convivas, é o mesmo o tamanho do bolo ... .
A persistir esta “nova interpretação” do federalismo nacional, todos os demais elementos que sustentam a autonomia dos Estados e Municípios tenderão a perder força, abrindo espaço para todas as aventuras de cunho autoritário e desagregador com potencial para abalar os alicerces sobre os quais se ergue a República Federativa do Brasil. Efeitos desagregadores que se fazem sentir nos impasses legislativos e nas decisões do Poder Judiciário quando são demandados a decidir ou se pronunciar sobre redivisão territorial do Brasil através da criação de novos Estados e Municípios.
O que se pretende, finalmente, ao apresentar esta Proposta de Emenda à Constituição ao exame do Congresso Nacional, é restabelecer a redação apresentada pelo constituinte originário ao § 4° do art. 18 da Constituição Federal, a qual restitui às “populações diretamente interessadas” o poder de criação, incorporação, fusão e desmembramento de Municípios, há quatorze anos engessado e dependente de legislações e iniciativas dos poderes legislativo e executivo da União, competências que lhe foram atribuídas, por lamentável engano ou inadvertência, pela Emenda Constitucional n° 15, de 1996.
“Em outras palavras”, destacou Giovanni Queiroz em sua justificativa, “o que se pretende é devolver aos Estados sua legítima competência para viabilizar a presença efetiva do poder público municipal nos limites de seus respectivos territórios e, por extensão, em cada ponto do território nacional onde a densidade de assentamos populacionais e o convívio humano tornem necessária a presença organizada de Prefeituras e Câmaras Municipais.”