A Voz da Serpente ou A Folha do Éden?
Não acredito na falada objetividade jornalística, na isenção a qualquer preço. Mas acho que a mídia não deve agir como um exército que defende apenas um lado e continua sendo salutar a separação entre editorial e noticiário, que muitos veículos abandonaram ao longo da estrada, para construir capas e manchetes sem a menor cerimônia, e em alguns casos, muito bem pagas. Sem falar em colunistas que transformam seu espaço de opinião numa trincheira ou num balcão de negócios.
Quem está chuva precisa aprender a conviver com críticas e reclamações: em oito anos no comando do Roda Viva, coleciono resmungos e muxoxos de todo lado. Há quem veja o programa como um ninho de tucanos e os que enxergam ali um antro de petistas.
Para amainar o clima, recorro a um exercício que já fiz em algumas palestras: o de imaginar como seriam as manchetes da para a expulsão de Adão e Eva do paraíso.
• Folha do Éden - Casal expulso do paraíso quer formar família.
• O Estado do Paraíso - Todo-Poderoso mostra quem manda.
• A Voz da Serpente - Injustiça no quintal de “Deus”.
Dois exemplos apenas de como seriam as matérias:
Na Folha do Éden
O primeiro casal humano (Adão e Eva) foi encontrado hoje perambulando em volta do Jardim do Éden em trajes menores. Os dois teriam sido expulsos de lá depois de um desentendimento com Deus. O casal contava a mesma história – a de que tinham sido levados a desobedecer uma determinação divina, por causa da serpente. O réptil, habilidoso como sempre, teria convencido Eva a comer uma maçã, fruto da árvore do conhecimento.
- Pode alguém ser punido por uma atitude tão inofensiva? peguntava Eva, diante do olhar preocupado de um Adão ainda perplexo.
O porta-voz de Deus, arcanjo Gabriel, explicou que o Senhor estava ocupado analisando as conseqüências do incidente para seu projeto edênico e não poderia falar com a imprensa. Mas o porta-voz deixou claro que a Justiça Divina continuará sendo implacável e que os pedidos de anistia ou mesmo de revisão de pena não serão levados em conta.
A serpente não foi encontrada em nenhuma árvore. O advogado do casal vai pedir laudo pericial da maçã e reconstituição do crime. Não se sabe ainda as conseqüências para o futuro da humanidade. Há informações de que Deus analisa a possibildiade de eleger os golfinhos como herdeiros do paraíso. O casal de humanos admite que comer o fruto foi uma experiência inesquecível e definitiva e quer formar família.
Já A Voz da Serpente seria assim:
Insegurança de quem se apresenta como o Senhor de todas as coisas mostra a face cruel do “Todo-Poderoso”e deixa casal humano na maior miséria, sem ter onde morar.
O casal de humanos, Adão e Eva, vive dias de amargura, depois de ter sido posto para fora do Jardim do Éden, sem apelação. O autor da violência foi nada mais, nada menos do que deus, que faz questão de grafar seu nome em letras maiúsculas. O verdadeiro motivo da expulsão foi o temor da concorrência. Eva havia provado a maçã, fruto d árvore do conhecimento. Gostou do sabor, ofereceu à Adão que também se entusiasmou.
Quem informou à dupla sobre as vantagens do fruto, injustamente proibido pelo criador do Éden foi nossa companheira, a serpente, que agora corre o risco de ser responsabilizada pelo que o pessoal do céu chama de crime – a informação isenta, correta e independente. Adão e Eva ainda não sabem o que vão fazer e estudam uma proposta de Lúcifer para assumir o cargo de relações públicas do inferno.
É bem possível que o caso rendesse mais: na propaganda, uma nova grife, By Adam. No caderno de imóveis, página dupla com uma oportunidade única: novos lotes no exclusivo Off Eden. Outdoors informando a campanha de estímulo ao consumo da fruta proibida - Maçã: pecado é não comer – e numa rede de TV, um talk show com a serpente, o Língua ferina.
Moral da história: impossível agradar gregos e troianos, mas não é impossível tentar manter alguma eqüidistância.
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