É uma guerra!
Entrevista: José Mariano Beltrame
Sem hipocrisia
O secretário de Segurança do Rio diz que a sociedade
também é responsável pela escalada da violência
Ronaldo Soares
Oscar Cabral | "Não existe mais o crime famélico. Ninguém mais rouba um celular para trocar por um pedaço de pão. Rouba porque o traficante manda" |
A semana passada começou bem para o secretário José Mariano Beltrame. A prisão do chefe do tráfico na favela da Rocinha foi destaque nos jornais e no horário nobre da televisão. Menos de 24 horas depois, referindo-se à dificuldade de planejar as ações em favelas devido às diferenças físicas e demográficas entre as regiões da cidade, Beltrame disse que "é diferente um tiro em Copacabana e um na Favela da Coréia" (Zona Oeste do Rio). E voltou às manchetes, desta vez acusado de discriminar os moradores de favela. São ossos do ofício de quem ocupa o cargo de maior visibilidade entre os responsáveis pela segurança pública no Brasil e não tem medo das conseqüências da guerra contra a bandidagem. "Hoje morrem dez. Se não fizermos nada, no ano que vem vão morrer vinte", resume. Gaúcho de Santa Maria, 50 anos de idade e 27 de carreira na Polícia Federal, Beltrame tem uma rotina pesada. Acorda cedo, corre 5 quilômetros, trabalha pelo menos até as 21 horas. Em seu gabinete, no centro do Rio, Beltrame deu a seguinte entrevista a VEJA.
Veja – O que é preciso fazer para derrotar os bandidos e restabelecer a ordem no Rio de Janeiro?
Beltrame – O Rio chegou a um ponto que infelizmente exige sacrifícios. Sei que isso é difícil de aceitar, mas, para acabarmos com o poder de fogo dos bandidos, vidas vão ser dizimadas. O quadro é esse. Ao longo do tempo, as quadrilhas se fortaleceram a tal ponto que hoje têm a audácia de abanar armas para a polícia. Quando 350 policiais entram numa favela, 25 bandidos resolvem encará-los e fazem um estrago terrível. Recentemente, morreram doze pessoas nos confrontos da Favela da Coréia, na Zona Oeste. Mas, se não tivéssemos agido agora, no ano que vem morreriam 24. E, se esperássemos mais dois anos, seriam 36, e assim sucessivamente. É uma guerra, e numa guerra há feridos e mortos.
Veja – Por que é tão difícil esse combate?
Beltrame – Por causa de certas peculiaridades que temos aqui. A configuração geográfica da cidade faz com que a polícia tenha de atuar de maneira diferente em cada lugar. Era a isso que eu me referia quando disse que um tiro em Copacabana é diferente de um tiro na Coréia. A Zona Sul, com suas favelas em encostas, requer um tipo de planejamento. Já as favelas horizontais de outras regiões exigem outro tipo de operação. Esse fator, combinado com a concorrência feroz entre facções rivais, faz do Rio um lugar definitivamente singular no cenário mundial. Não temos nada a ver com o Haiti, muito menos com o Iraque. O crime aqui está na Zona Sul, na Baixada Fluminense, na Zona Norte. Quem mora em Copacabana não precisa ir à Rocinha para comprar drogas, pode buscar ali mesmo. Esses mercados usaram a geografia do Rio de Janeiro a seu favor. O resultado é que a violência aqui não é periférica, ela está no seio da sociedade.
Veja – Qual é a parcela da criminalidade que se pode atribuir hoje ao tráfico?
Beltrame – No Rio não existe mais o crime famélico. Ninguém mais rouba um celular aqui para trocar por um pedaço de pão. O menino rouba um celular porque a facção criminosa do lugar onde ele mora quer um ou dois aparelhos para usá-los em negócios ilícitos. Uma criança que rouba um celular na rua quer aquilo para quê? Não é para falar com a mãe ou o pai. O celular faz parte da logística do traficante, assim como o carro e o dinheiro obtido em assaltos na saída do banco. Os pobres não são responsáveis pela violência. Eles são, aliás, os que mais sofrem com a ação desses bandidos. É nas favelas que o tráfico impõe a lei do silêncio, exige que as pessoas durmam com os portões abertos, obriga moradores a esconder uma arma em casa ou a abrigar o próprio criminoso lá dentro. O pior é que a permanência dessa situação é favorecida, em parte, por cidadãos comuns, que às vezes nem se dão conta de que seus atos beneficiam os criminosos.
Veja – Que atos?
Beltrame – Vou dar um exemplo. Um cidadão está numa festa cheirando cocaína, chega à rua e vê que seu carro foi roubado. Ele vai à delegacia reclamar, mas não quer saber que roubaram o carro dele para vender as peças e comprar pó. Da mesma forma, não aceito o sujeito que paga propina a um policial. Mas ele prefere pagar 50 reais de propina porque o IPVA, que custa 800 reais, está atrasado. Ou então aquele empresário que se queixa do suborno pago ao agente público para não ser fiscalizado. Ele lucra com a sonegação. No Brasil, e no Rio de Janeiro em particular, a convivência promíscua entre o legal e o ilegal, o formal e o informal, provocou essa situação ambígua. Agora chegamos a um ponto em que precisamos decidir. A sociedade precisa escolher de que lado está. É fundamental acabar com a promiscuidade que torna aceitáveis práticas condenáveis.
Veja – Os críticos de seu trabalho dizem que o senhor não leva em conta os problemas sociais.
Beltrame – Não podemos passar a mão na cabeça dos marginais, com a desculpa de que eles são excluídos sociais. Dentro desses conceitos vagos, as pessoas navegam sem rumo. Não fujo da discussão, mas não me apresentem discursos acadêmicos como se eles fossem solução. A meu ver, esse é um equívoco que as ONGs cometem, pois não conseguem enxergar nada além das ciências sociais. Não há dúvida de que a miséria e a falta de oportunidades para os jovens estão entre as causas da violência. Essa legião de jovens desempregados, sem opção, constitui um problema e um enorme desafio. Mas quando a polícia age desarmando o tráfico, combatendo as quadrilhas, está fazendo um trabalho de intervenção social. Está recuperando para a sociedade áreas tomadas pelos bandidos. Está contribuindo para acabar com o drama dos moradores de favelas onde, para enterrar o corpo de uma pessoa que morreu de causas naturais, é preciso colocar o cadáver num carrinho de mão e levá-lo até um local onde o rabecão possa pegá-lo. O estado tem de entrar lá e atuar. O que fazemos é abrir esse caminho. O traficante não pode ser referência para as crianças.
Veja – Como assim?
Beltrame – Numa missão da Polícia Federal em Roraima, vi uma criança que mal sabia caminhar brincando com suas bonecas e com uma pistola calibre 45 de verdade. Quando essa criança tiver 10 anos, aquilo ali vai ser a mesma coisa que um pirulito para ela. E assim são os jovens hoje no morro. Se não for apresentado a nenhuma outra opção, o jovem se espelhará no ídolo dele, que é o dono da boca-de-fumo: um sujeito com o corpo malhado, que tem correntinha de ouro, transa com qualquer menina e tem o carro que quer porque manda roubar, tem o celular bom porque manda roubar. É imprescindível que o estado, as políticas públicas, ataquem isso.
Veja – No caso das favelas, onde o estado não se faz presente, é possível uma entidade ou até serviços públicos atuarem sem autorização do tráfico?
Beltrame – Hoje, na maioria das favelas, não. No entanto, o estado não pode compactuar com bandidos de forma alguma. A polícia tem de ir lá e fazer o seu trabalho. Os moradores das favelas se tornaram reféns, e nosso trabalho é resgatá-los. Como um professor pode dar aulas às crianças se o colégio é monitorado 24 horas por marginais armados? Já houve caso de diretora de escola que encontrou armas com as crianças e tentou recolhê-las, mas os alunos disseram: "Tia, não faz isso, senão eu e minha família não chegamos em casa. Tenho de entregar isso mais tarde para uma pessoa". Que educação é essa que as crianças vão ter? Se o estado tiver de ir lá fazer algum tipo de intervenção, precisa entrar sem pedir licença a ninguém. Aquele território é público. Infelizmente, nem sempre se procedeu assim. E, conforme o tempo passa, pior vai ficando.
Veja – Por que a Colômbia, onde a segurança pública era mais caótica do que aqui, conseguiu avanços nessa área, enquanto nossa situação continuou ruim?
Beltrame – O que aconteceu na Colômbia foi que o país decidiu apoiar Bogotá e Medellín. Além da ajuda internacional vinda dos Estados Unidos, houve um investimento de 5% do PIB colombiano para arrumar Bogotá. Por causa desse investimento, a ação da polícia foi massificada, é vista em todos os lugares. Mas é preciso dizer que muitas mortes ocorreram nesse processo, porque lá também há uma concorrência entre grupos rivais. Nesse caso, os paramilitares, as Farc e o narcotráfico. No Brasil, seria necessário um reconhecimento de toda a nação de que o Rio de Janeiro é um lugar emblemático. Resolver o problema da criminalidade aqui é importante para o país.
Veja – E que lições podem ser aproveitadas para o Brasil a partir do que se viu no Rio até hoje?
Beltrame – Olhar para a história do Rio talvez seja a melhor vacina para evitar a reprodução dessa tragédia. A situação atual de insegurança aqui foi construída ao longo de décadas de interferência política irresponsável e de ausência de políticas públicas. É importante tomar muito cuidado para que a comunidade não perca a confiança na polícia, porque isso inibe o cidadão que quer denunciar um crime. Deve-se levar em conta que, se a situação está ruim, sem a polícia seria pior. O melhor que os outros estados têm a fazer é se empenhar em mecanismos de prevenção, para evitar que se afoguem no trabalho incessante de repressão, como este que estamos fazendo.
Veja – Qual foi seu pior momento na secretaria?
Beltrame – Foi no início do ano, depois dos ataques pela cidade, quando queimaram pessoas num ônibus. Ali, doze bandidos espalharam o pânico que contaminou 6 milhões de pessoas. É um absurdo, mas aconteceu. Tivemos de parar todo o planejamento para investigar isso. Não dava para fazer nenhum projeto sabendo que havia quadrilhas dizendo que iam tomar o Aeroporto Santos Dumont ou os shopping centers. Outro momento duro foi o caso do menino João Hélio (que morreu arrastado pelas ruas, preso pelo cinto de segurança do carro, num assalto). Acho que a sociedade não pode se esquecer do que aconteceu ali. É por isso que eu insisto em dizer que ela tem de optar, definir de que lado está nessa guerra.
Veja – No filme Tropa de Elite, a platéia chega a aplaudir cenas de tortura e excessos cometidos pelos policiais. A que o senhor atribui isso?
Beltrame – A duas coisas. Em primeiro lugar, acho que é o efeito de uma sociedade que apanhou muito. Ela não agüenta mais ser barbarizada nas ruas pelos bandidos. E, depois, porque a polícia aparece numa outra perspectiva, que até então não se via. Acho que, por um processo histórico, que começou décadas atrás, a polícia estava de mãos amarradas, não funcionava.
Veja – A corrupção não ajudou a desacreditar a polícia?
Beltrame – Historicamente, a polícia carrega essa pecha de envolvimento com o crime, com o jogo do bicho. Isso vem de muito tempo atrás, não é de agora. Realmente, esse fato faz com que a população perca a confiança na corporação. Mas, no momento em que oferecermos ao policial condições para trabalhar, com melhor salário e uma nova postura, vai dar muito certo. É o que estamos fazendo. Só neste ano, mais de 150 policiais foram excluídos, o que é um recorde. Precisamos de uma vigilância eficiente e, também, mostrar ao servidor que estamos do lado dele, tentando melhorar equipamentos, salários etc. O policial realmente era cooptado pelo crime, e isso acontece ainda hoje. Mas estamos trabalhando para mudar esse quadro.
Veja – Qual é sua opinião sobre o capitão Nascimento, protagonista do filme Tropa de Elite?
Beltrame – Sem dúvida alguma, um capitão do Bope está bem representado ali – tirando, é claro, alguns excessos do filme. Assim como a PM apresentada no cinema é a nossa PM. Hoje, a PM é melhor que a do filme, mas já foi quase como a mostrada em Tropa de Elite. Eu considero o capitão Nascimento um herói. Sei que vão pegar no meu pé, porque o Bope aparece ensacando e batendo nas pessoas, mas isso só ocorre na ficção. Digo que se trata de um herói porque o policial do Bope enfrenta picos de tensão, é uma pessoa muito disciplinada e bem preparada. E ainda tem de cuidar de seu lado pessoal e familiar, que muitas vezes fica em segundo plano.
Beltrame – Fico um pouco assustado. Mas o capitão Nascimento é um personagem de ficção. Eu sou secretário de Segurança. Os termômetros que levo em consideração mesmo para avaliar a secretaria são a manicure da minha esposa, o taxista, o cara do barzinho da esquina, o jornaleiro, o ascensorista. A leitura que conta para mim é essa, e não a dos teóricos. É uma leitura de quem sofre. Isso, sim, me sensibiliza muito.
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