O princípio da precaução e a Vale do Rio Doce

Por Alon Feuerwerker

Imaginem o imbróglio que seria algum estrangeiro comprar a cvrd e depois os tribunais brasileiros decidirem que a privatização deve ser anulada. estaria criado um gravíssimo abacaxi diplomático.

O conceito que está no título desta coluna é caro aos ambientalistas. Segundo o princípio da precaução, ou de sua interpretação mais estrita, você não deve fazer nada que possa ter sobre o meio ambiente conseqüências ainda não previsíveis, e portanto não preveníveis. Mas a tese não se aplica apenas ao ambientalismo. Ainda que informalmente, o princípio da precaução rege, por exemplo, a política das grandes potências para seus recursos naturais não renováveis.

Um caso de precaução é a atitude dos Estados Unidos em relação ao petróleo. Sempre que possível, os americanos preferem consumir o petróleo dos outros enquanto preservam o seu. Para defender essa estratégia, se preciso vão à guerra. Na pátria operacional do liberalismo e da economia de mercado, a idéia de um mundo que se auto-regula pela lei da oferta e da procura também tem os seus limites.

Mesmo com o petróleo a US$ 100 o barril, e com todas as conseqüências que o patamar de três dígitos possa ter sobre o crescimento da maior economia mundial, não se vêem os Estados Unidos inundando o mercado com o óleo proveniente de suas reservas, para tentar baixar o preço. Faz sentido. Os americanos não podem mesmo estar à mercê de outros países em questões estratégicas. Não podem admitir ficar na mão de algum governante insensível, ou maluco, que certo dia decida fechar uma torneira e com isso paralisar a única superpotência do planeta.

O exemplo de Saddam Hussein está aí para demover os incautos. Depois que ele invadiu o Kuwait, no começo dos anos 90 do século passado, tudo deu errado. Uma coisa boa nos Estados Unidos, para os americanos, é que invariavelmente os governos americanos defendem o interesse dos Estados Unidos. Mesmo quando, como é o caso do petróleo, precisam mandar às favas a ideologia. Já que o grande país no norte das Américas é um exemplo de nação que deu certo, talvez seja o caso de copiá-los nesse particular.

A Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), simpaticamente reapelidada de "Vale" em sua nova paginação, realiza movimentos para adquirir a anglo-suíça Xstrata. Em teoria, trata-se de uma empresa brasileira ganhando posições no mercado mundial de mineração. Na prática, é preciso saber com alguma margem de certeza se a compra não é, na verdade, o primeiro capítulo de uma venda lá na frente.

No dia em que os felizes acionistas controladores da CVRD conseguirem passar adiante sua fatia no business, terão realizado um dos mais fantásticos negócios da história do capitalismo, já que a empresa hoje vale (sem trocadilhos) algumas dezenas de vezes o preço obtido por ela na privatização. Considerando que um dos principais donos atuais da CVRD é um banco, e que o negócio dos bancos não é mineração, mas entrar e sair de negócios ganhando um bom dinheiro, ninguém poderá condenar o acionista da CVRD se ele considerar seriamente a possibilidade de fazer tal magnífico upside.

Nessa hipótese, estaríamos diante de um típico caso em que o interesse nacional não se confunde com o interesse de uma empresa, por mais importante que seja ela. Por uma casualidade, a realidade deste começo de século 21 acabou colocando os produtores de commodities em situação privilegiada no panorama econômico mundial. Agradeçamos às centenas de milhões de chineses que não cessam de entrar no mercado de consumo. E cuidemos bem do que é nosso. Por mais entristecidos que possam ficar os acionistas da CVRD.

Até porque há outro problema no caso da CVRD. A própria venda da companhia pela União, uma década atrás, é contestada na Justiça. Imaginem o imbróglio que seria algum estrangeiro comprar a CVRD e depois os tribunais brasileiros decidirem que a privatização dela teve problemas que imponham a anulação da coisa toda. Estaria criado um gravíssimo abacaxi diplomático entre nós e um (ou mais de um) país desenvolvido. Que certamente viria para cima do Brasil, e com tudo.

O princípio da precaução recomenda que o país e o governo fiquem de olhos bem abertos diante dos movimentos dos acionistas controladores da CVRD e dos potenciais financiadores do negócio com a Xstrata. Não vai ficar bem para Luiz Inácio Lula da Silva e o PT assistirem passivamente à desnacionalização da CVRD. Mesmo que hoje ambos saboreiem a auto-suficiência característica do poder, sempre é prudente (olha aí de novo, o tal princípio) lembrar que sobre o futuro há uma única coisa certa: ele sempre chega.

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