Já havia a suspeita de que parte da abrupta onda de descrédito em todo mundo da produção de biocombustíveis é fomentada a golpes de marketing — armação de interesses ligados ao petróleo, incluindo países do cartel da Opep e empresas. E, depois do choque de preço dos alimentos, também por dirigentes do Banco Mundial, FMI, Nações Unidas e União Européia, todos apontando o dedo acusador ao desvio das lavouras para a produção de etanol e daí à inflação da comida.
O que era suspeita virou certeza graças a algumas reportagens até burocráticas de uma publicação de Washington especializada no dia-a-dia das duas casas do Congresso dos EUA: a Roll Call. Nelas se adentra no mundo de sombras da ação dos lobbies junto ao poder.
É um jogo bruto, dissimulado, com posições conflitantes dentro de uma mesma organização, como da ONU, em que um condena o álcool do Brasil, outro o isenta e despeja a responsabilidade pela carestia dos alimentos no mundo ao desvio do milho nos EUA para a produção de etanol. Conflitos, no entanto, às vezes sugerindo não divisões de pensamento, mas o trivial morde-assopra do mundo político.
Com que intenção? Aos organismos multilaterais e governos desviar o foco das atenções sobre as suas responsabilidades pela crise dos alimentos para inimigos reais e imaginários. Aos exportadores de petróleo, para aleijar o biocombustível, hoje a única alternativa viável aos combustíveis fósseis — menos pelo preço e mais devido à ânsia de grandes importadores como os EUA de cortar a dependência de fornecedores politicamente instáveis e hostis, como os árabes.
Mas a grande ameaça ao petróleo era o que vinha num crescente: a opção dos combustíveis verdes como solução pela menor queima de CO² contra o aquecimento da Terra. Esse era um movimento positivo. O álcool de cana, por exemplo, é menos poluente que a gasolina, bem como o biodiesel derivado de grãos e óleos vegetais.
A jogada é inteligente: criminalizar os combustíveis verdes pela expulsão da agricultura alimentar, reduzindo assim as colheitas, quando, na verdade, a inflação agrícola resulta do aumento brutal do petróleo e da incorporação ao mercado de consumo de centenas de milhões de consumidores até então marginalizados na China e Índia.
Os nomes aos bois
Agora se sabe graças à Roll Call — no caso do álcool de milho —, que há nos EUA pelo menos uma organização conhecida por trás dos ataques, o nome da agência de relações públicas contratada para dirigir a campanha de difamação na imprensa e até a estratégia.
O contratante é um lobby poderoso: chama-se Grocery Manufacturers Association, GMA, que reúne a indústria de alimentos e bebidas dos EUA. Nela estão portentos como Coca-Cola, Nestlé, Campbell, Sara Lee, Procter & Gamble e Unilever. A agência é a Glover Park, de Washington, cujas contas vão da defesa do Patriot Act, que ampliou a segurança nos EUA após os atentados de 11 de setembro de 2001, à campanha contra a privatização do controle do tráfego aéreo — que lá também é problema —, para a associação de controladores de vôo.
Esquerda cooptada
Por um contrato de seis meses desde março passado e US$ 300 mil, a Glover recebeu a incumbência, segundo briefing da GMA a que a Roll Call teve acesso, para fundamentar “os motivos em apoio a congelar ou reverter a Lei de Energia de 2007 (que aumenta a produção de álcool em cinco vezes até 2022) e eliminar/reformar o subsídio do etanol e restrições às importações”. A estratégia da Glover, como reporta em mensagem à GMA, envolve uma campanha para construir uma “coalizão global de centro-esquerda” (curiosa a opção por essa vertente política), o que inclui a “contratação de especialistas” (leia-se: cientistas, políticos) “para ligar a lei do álcool à fome global, demissões na indústria de alimentação e à inflação”.
A Secom vai à luta
A campanha da GMA em princípio favorece o álcool brasileiro. Pode ajudar a campanha de promoção da imagem do Brasil que a Secom está licitando ao custo de R$ 15 milhões em 12 meses. O prazo para as habilitações se encerra esta segunda. Mas o que importa no caso da GMA é o que ela revela: cooptação de formadores de opinião que o senso comum supõe isentos, a difamação como prática, o lobby sobre os políticos. O dinheiro envolvido é grosso, mais do que se paga formalmente às agências. É um trabalho que exala mau cheiro, mas é assim que se movem a diplomacia de fato e as relações comerciais.
A indústria de alimentos dos EUA se arma contra o etanol de milho e os defensores do biocombustíveis não fazem por menos. Segundo a Roll Call, está se formando uma coalizão pelo “biofuel” nos EUA, reunindo 10 entidades e verba de até US$ 4 milhões por um ano. O ex-vice-presidente dos EUA Al Gore se tornou um ativista ecológico — e ganhou o Nobel da Paz de 2007 e o Oscar pelo documentário Uma Verdade Inconveniente, no qual é o apresentador. Isso se sabe.
O que poucos sabem é que Gore entrou no ambientalismo associado ao Kleiner Perkins Caufield & Byers, banco da Califórnia que virou legenda da tecnologia de ponta por bancar negócios como o Google e Amazonas.com. Hoje, seu foco é a descoberta de energias limpas e o “combustível matador” do petróleo. Eles estão no Brasil investindo em pesquisas de etanol. A Opep reage orquestrando a difamação do etanol de qualquer origem. É a versão moderna da guerra fria.
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