Foi só o ritmo frenético de vendas de veículos arrefecer um tiquinho para as campanhas de financiamento a juro zero - ou a quase nada - invadirem os classificados dos jornais e os comerciais da TV. Em tempos de aumento da taxa básica da economia, a propaganda tem um poder de atração inquestionável para quem vê no pagamento facilitado um atalho para comprar o carro dos sonhos sem ter de corroer a poupança pessoal. O que o consumidor não enxerga a olhos nus, entretanto, é que a magia por trás dos anúncios tem o seu preço sim. Uma simulação feita pelo Valor, com base em dados fornecidos por concessionárias em São Paulo, mostra que o tal do juro zero pode custar até 16% num intervalo de três anos.
Nesta temporada, são principalmente os carros mais caros, com valor acima de R$ 50 mil, e a categoria luxo, a partir de R$ 70 mil, os alvos das ofertas. As campanhas são direcionadas a um público que, em tese, tem o dinheiro para fazer a compra à vista e que pode ver no apelo do custo camarada uma forma aparente de poupança, diz o consultor Hugo Azevedo, autor do livro "500 perguntas (e respostas) básicas de finanças". "A primeira pergunta que o consumidor tem de fazer é se ele consegue um desconto à vista e compará-lo aos juros que vai ganhar com a aplicação a cada mês."
Para um financiamento de 36 meses, por exemplo, ele calcula que o desconto mínimo, sem considerar a tarifa de cadastro (TC) e o imposto sobre operações financeiras (IOF), tenha de ser de 6,6% para valer a compra à vista. Se for menor do que isso e o comprador tiver os recursos aplicados num Certificado de Depósito Bancário (CDB) que proporcione 1% líquido ao mês, daí o crédito pode compensar. "Mas nesse caso o consumidor precisa ter disciplina para não dar outro destino para o dinheiro."
O menor custo que se pode admitir como realista numa operação de financiamento no Brasil de hoje, com uma Selic em 13,75% ao ano - e com perspectivas de novas altas -, é de 1,08% ao mês ou, na melhor das hipóteses, de taxa referencial (TR) mais 0,5% ao mês numa operação de crédito imobiliário, diz o matemático e professor José Dutra Sobrinho. O truque por trás da venda a prazo sem juros, bem velho aliás, é que os anúncios trazem o preço da tabela cheio. "Se o valor à vista for igual ao financiando, um dos lados está fazendo um mau negócio", afirma. Por isso, recomenda, é quem tem o dinheiro para pagar o veículo no ato que tem de exigir, sim, um belo desconto, de 10% pelo menos.
Não é difícil. Na pesquisa junto às concessionárias, a reportagem do Valor chegou a obter um abatimento de mais de 13% na cotação de um Tucson 2.0, da fabricante Hyundai. Na pesquisa de um Sportage, da KIA, o preço anunciado, já promocional, caiu rapidamente de R$ 84,4 mil para R$ 78 mil. "É por causa do rebate no financiamento", admitiu o vendedor. "Nele, alguém paga pelos juros, a loja paga", emendou.
Pela ótica da indústria, vale mais a pena vender o veículo com desconto, subsidiando os juros, do que enfrentar uma redução maior de demanda, assinala o professor da Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuariais e Financeiras (Fipecafi) Alexandre Assaf Neto. "Há todo o custo de oportunidade da capacidade instalada e mesmo que a retração seja pequena em termos percentuais, ela pode ser significativa em valores absolutos." Do lado da distribuição, ele lembra que a atividade da concessionária é mais rentável no pós-venda, com serviços de manutenção, comercialização de auto-peças e acessórios, do que, efetivamente, com a venda do automóvel. Os serviços financeiros, como o seguro e o financiamento, se transformaram em mais uma perna desse negócio.
Nesse esforço de agregar valor à atividade do lojista, é mais difícil para o consumidor depurar o que são os juros e o que é o preço do carro, afirma Maurício Gentil, superintendente da Meta Asset Management e especialista em finanças pessoais. "O crédito passou a ser entendido como um instrumento de marketing." Conforme explica, o comércio em geral aprendeu a lidar muito bem com a sistemática das vendas parceladas e, muitas vezes, evita fornecer qualquer desconto para a compra à vista, vide a Casas Bahia. "É mais vantajoso vender financiando não só pelo efeito retenção do cliente, como também pelo lado operacional, já que o ganho com a aplicação do caixa rendendo CDI é menor do que a empresa obtém no fluxo de contas a receber quando dá prazo", diz o executivo.
Gentil argumenta que sempre é mais recomendável acumular uma poupança e adquirir o bem à vista, o que, invariavelmente, aumenta o poder de barganha do comprador. Ele sugere que o indivíduo bem empregado tenha uma reserva equivalente a pelo menos seis meses do seu padrão mínimo de vida antes de se render ao apelo do consumo fácil.
Juro zero só mesmo para quem acredita que bebês nascem em repolho, brinca o diretor-executivo de finanças pessoais da Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade (Anefac), Louis Frankenberg. "O problema é que o brasileiro se deixa levar pela emoção e quando quer adquirir determinada marca de carro tem de ser naquele dia, não faz pesquisa e paga o que o vendedor diz que é o custo." Herança dos tempos de hiperinflação, época em que ter um automóvel era considerado investimento.
Ele vê na pujante oferta de crédito uma conta que pode ser cobrada mais adiante. Pelos últimos dados do Banco Central (BC), do estoque de R$ 266,3 bilhões em linhas destinadas à pessoa física em julho, mais de um terço, o equivalente a R$ 84,0 bilhões, referia-se a financiamento de veículos. Mesmo para um carro popular como um Gol Flex é possível encontrar financiamentos com taxas anunciadas de 0,20% ao mês - custo que sobe a 1,87% quando se inclui a TC. "Quem comprou um carro e vai pagar R$ 500,00 por 36,48 ou 60 meses não pode esquecer que vai ter o dobro de custos com o veículo nesse período, com despesas de combustível, IPVA, seguro e estacionamento."
Fonte: Valor.
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