Eclusas de Tucuruí: alhos não deveriam ser bugalhos

Obra de maus feitos, Tucuruí torra R$ 1,2 bi

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A nova data para a inauguração das eclusas é 2010, já com atraso de três anos pela atualização feita em 2005. A usina é a quarta maior do mundo

LÚCIO FLÁVIO PINTO (*)
lucioflavio@agenciaamazonia.com.br Este endereço de e-mail está protegido contra spambots. Você deve habilitar o JavaScript para visualizá-lo.

BELÉM, PA – A transposição da parede de concreto, com 72 metros de altura, levantada sobre o leito do rio Tocantins, se transformou na esfinge do Pará. A eclusa de Tucuruí se tornou um lugar comum nas conversas sobre o presente e o futuro do Estado. Nem por isso se formou uma fonte de pressão com suficiente força para a conclusão da obra. A repetição embotou os sentidos e bloqueou a compreensão do fato. O que devia ser um dos melhores instrumentos a serviço do desenvolvimento estadual se transmudou em coisa além do controle local, uma espécie de nave espacial. Se é que não se traduz com maior valor simbólico por mais um cavalo de Tróia.

O sistema de transposição da barragem da hidrelétrica de Tucuruí é um exemplo acabado – e amargo – da condição colonial do Pará. Vítimas preferenciais, ao lado de Mato Grosso e Rondônia, da devastação por via rodoviária, os paraenses ansiavam por voltar ao rio, rua e fonte vida até o interior do Estado ser rasgado pelas espinhas de peixe da ocupação humana, desencadeadas pelas estradas de penetração à terra firme.

O Tocantins foi barrado para gerar eletricidade, mas o lago que se formou a montante da represa, hoje com área de mais de três mil quilômetros quadrados, submergiria as pedras e possibilitaria navegação plena numa extensão de mais de 500 quilômetros a partir de Belém, rio acima. Outros aproveitamentos mais a montante permitiriam seguir por via fluvial pelo Tocantins ou através do Araguaia.

Quase 30 anos de construção

Rio é caminho democrático, qualquer um pode acessar e, a partir dele, parar onde quiser, estabelecer as relações – pessoais e de produção – que escolher. Com a trilha desimpedida, as pessoas voltariam para as margens ou nelas encontrariam seu novo sítio. A possibilidade de um transporte mais barato fomentaria as atividades humanas. Ao invés de ser apenas uma plataforma para o lançamento além-mar das riquezas da região, como a ferrovia de Carajás, a hidrovia do Tocantins-Araguaia teria um efeito multiplicador interno que é impossível ao longo dos eixos de exportação.

O já distante dia 9 de setembro de 1981 foi a data oficial de partida da eclusa de Tucuruí. Ela começou com atraso de seis anos em relação às obras da hidrelétrica, que entrou em operação no final de 1984. Hoje, Tucuruí é a quarta maior do mundo e a maior inteiramente dentro do território brasileiro, depois de Itaipu, que é binacional.

A nova data para a inauguração das eclusas é 2010, já com atraso de três anos pela atualização feita em 2005. Quase 30 anos de construção é praticamente um recorde, mas não chega a ser o aspecto mais importante dessa intrigante história.

Pelo projeto básico, as obras civis do sistema de transposição sairiam por 230,6 milhões de reais. Os equipamentos eletromecânicos consumiriam mais R$ 100 milhões. O valor do contrato original, aditado em 1998, com dispensa de licitação, pulou para R$ 367 milhões. O Tribunal de Contas da União, na auditagem que fez em 2005, constatou R$ 118 milhões executados e pagos. Com mais R$ 370 milhões, as obras seriam concluídas em 2007. Não foram. O orçamento ronda atualmente a marca de R$ 1,2 bilhão.

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Lentidão e sumidouro

Alongamento do cronograma, adições, revisões, atualizações e prolongamentos de obras tornam a tarefa difícil quantificar a exata quantidade de dinheiro que já foi enterrada no sistema de transposição, formado por duas eclusas (que permitem a entrada e a saída das embarcações), e 5,5 quilômetros de canal de concreto, com 140 metros de largura.

Mas é fácil reconhecer que a obra se tornou um sumidouro de irregularidades e recursos. Basta consultar a lista de denúncias arquivadas ou em processo no TCU. A lentidão na frente de serviços, com sucessivas paralisações e retomadas, constituiu o cenário favorável a esses maus feitos.

As eclusas de Tucuruí nunca tiveram prioridade nos planos da alta burocracia federal. Para que gastar tanto na obra se não havia carga para ela, com capacidade para 40 milhões de toneladas nas duas direções? O rio podia continuar fechado para sempre, não fora a exigência legal quanto ao restabelecimento da sua navegabilidade e certa pressão feita no final dos anos 70 e no alvorecer da década de 80. A contragosto, Brasília foi liberando pequenas parcelas do grande orçamento, mas fechava a válvula financeira quando podia. Se era para fazer algo para vencer o desnível da barragem, que fosse aos poucos, a perder de vista, ou para inglês ver.

Eletronorte não queria

O projeto básico da hidrelétrica de Tucuruí não previa a transposição da represa. Se dependesse da Eletronorte, as eclusas jamais se teriam materializado. A contragosto, a estatal refez o projeto para transferir as eclusas para a margem esquerda, incorporando então ao reservatório a bacia do rio Caraipé. Mas quem ficou com a tarefa foi a Portobrás. Extinta a empresa federal portuária, as eclusas ficaram órfãs. Como enteadas, foram tratadas pela madrasta de plantão, agora o DNIT, renascido das cinzas do DNER (e até hoje mantido sob essas cinzas).

Nessa via crucis, valores foram multiplicados, as relações foram se tornando promíscuas, a qualidade nem sempre foi observada (assim como a quantidade) e o padrão caiu de nível. Certamente a sociedade pagará muito mais do que devia e receberá menos do que o devido. Mas se a última atualização se confirmar, por bem ou por mal, a navegabilidade do Tocantins em Tucuruí estará restabelecida no próximo ano.

E daí? A demanda surgirá como um maná do céu? A especialização imposta ao Pará, de enclave exportador, sofrerá brusca e milagrosa mutação? As abandonadas e maltratadas vias fluviais terão um resplendor por osmose? Quem administrará as eclusas? Que programas serão criados para aproveitá-las ou ao menos considerá-las? O que haverá nos extremos dela, a montante e a jusante?

São tantas perguntas e tão raras respostas que fica a sensação de que Tucuruí não fica no Pará. E, afinal, fica?

(*) É editor do Jornal Pessoal (onde este texto foi originalmente publicado) e colaborador da Agência Amazônia.

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