Jarbas Passarinho - Foi ministro de Estado, governador e senador
Direita e esquerda dominam o pensamento ocidental há mais de dois séculos. São termos antitéticos que dividem as ideologias, no contraste entre as paixões, uma pela igualdade e a outra pela liberdade, omitindo a fraternidade da tríade da Revolução Francesa. Marx ainda acrescentou a fraternidade à igualdade: uma vez comunista, o mundo inevitavelmente seria fraterno. Seria "o fim da história", tema de que se apropriou Francis Fukuyama ao escrever O fim da história e O último homem. O mundo contemporâneo desmentiu-lhe a profecia, uma arte perigosa dada a sucessão de fracassos, a despeito das crenças em Nostradamus.
No século 20, União Soviética e China, durante a Segunda Guerra Mundial, mobilizaram dezenas de divisões nas suas fronteiras, frente a frente, em ameaça recíproca. O Vietnã atacou militarmente o Camboja. Todos eles comunistas e nada fraternos.
No mesmo período que o historiador marxista Hobsbawn apelidou de "século breve", esquerda e direita provocaram hecatombes. Antes diferenciadas hermeticamente, vêm se aproximando. Não se combinam, mas seus regimes políticos admitem recíprocas concessões, mais que de estofo emocional. Países adeptos da economia de mercado vieram a ter ministério de planejamento, próprio da economia de comando marxista. As medidas que Marx e Engels propuseram no Manifesto de 1848 existem, hoje, em grande parte dos regimes capitalistas: Imposto de Renda progressivo, educação gratuita, taxação de herança, estatização de empresas e crédito nas mãos do Estado.
A China, de um único partido, o comunista, inventa o "socialismo de mercado". Com Raul Castro, alter ego de Fidel, os cubanos já podem freqüentar hotéis de luxo e acabam de ganhar um direito fabuloso: permissão para freqüentar a praia de Varadero, até há pouco privativa de turistas.
Bobbio afirmou que "nenhum homem de esquerda pode deixar de admitir que a esquerda de hoje não é mais a de ontem". Sartre, mais desgostoso, serve-se de imagem mais forte: "Esquerda e direita são hoje duas caixas vazias". Os esquerdistas anacrônicos, irredutíveis, repetem a ironia de Alain: "Quando alguém me diz que esquerda e direita já não têm diferença, logo concluo que se trata de um direitista". Gobarchev, nas suas memórias, sintetiza: "A antinomia socialismo/capitalismo parece-me, agora, caduca". A democracia mudou tanto, desde as ágoras gregas, que Burdeau diz que "hoje é uma filosofia, uma maneira de viver e só acessoriamente uma forma de governo".
A democracia representativa, também chamada de democracia governada, em que o eleitor abdica da sua soberania em favor de seu representante, evolui para a democracia governante. O povo participa das sessões públicas, sob condições especiais apresenta projeto de lei, muda leis reprovando referendos, vota plebiscitos. Implica, porém, o problema da interpretação da liberdade.
Aqui, onde o petismo é Executivo, ensaia-se um tipo de democracia governada que deprava o conceito de liberdade. Franklin Roosevelt, na mensagem ao Congresso em 1941, acrescentou às liberdades expressas no Bill of rights mais duas: a liberdade de não ter medo e a de não ter fome. Elas estão escrupulosamente respeitadas entre nós. Não temos medo — apesar dos esforços do deputado Devenir — de ilimitados mandatos presidenciais à moda Chávez, nem temos fome, graças ao Bolsa Família. Somos até mais generosos.
A burocracia, com cartões corporativos, jamais terá fome. Só a têm os poucos que ainda não comem três vezes ao dia. Medo não terão de pseudo-investigação os fazedores dos dossiês flagrados para fraudar eleição em favor de petistas. São indenes à responsabilidade. A criação de dezenas de "grupos de trabalho", de resultado ignorado, não teme aumentar o lixo do palácio. No parlamento, os mensaleiros trocaram dinheiro na boca do cofre dos bancos por aluguel de votos, sem medo, pois o presidente — coitado! — de nada sabia.
O bispo que estimula as invasões de empresas rurais, "sem o que não haverá reforma agrária", não tem medo de censura da CNBB. João Paulo II disse: "Sobre toda propriedade privada pesa uma hipoteca social". Para o bispo, a invasão é parte da hipoteca. Vândalos, protege-os a liberdade de invadir e depredar. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso teve o imóvel rural familiar invadido, devassado, o forró abastecido pela adega da casa. Os proprietários negaram-se a registrar a ocorrência na polícia
Experimentos agrícolas são depredados pela liberdade de lutar contra multinacionais. Oficial de justiça, esse, sim, teme, faz três meses, intimar Stedile, o "líder supremo" do MST (linguagem esplendorosa dos stalinistas). Não o encontra, mesmo quando, convidado, fazia palestra na Escola Superior de Guerra. Índios nada temem também: invadem a usina hidrelétrica de Tucuruí, gerando risco iminente às instalações, e obstruem a estrada de ferro da Vale do Rio Doce. Estudantes da UnB, à moda da USP, embora justa a causa, são livres para invadir a Reitoria e afrontar a Justiça, descumprindo mandato de reintegração de posse do imóvel. "Prefiro a injustiça à desordem", disse Goethe. Aqui se prefere a desordem. Depravou-se a liberdade democrática.
Artigo publicado hoje no Correio Braziliense