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Da medíocridade ao cargo vitalício

Da Série "Bem Brasil!".

Magistratura não é emprego
Antônio Cláudio Mariz de Oliveira

O candidato ao quinto constitucional preencheu com cuidado e exatidão todos os dados constantes na ficha de inscrição. Deu ao ato importância e alguma solenidade. Afinal, ele estava dando o primeiro passo para se tornar juiz de Direito.

Formou-se, concretizando um sonho cuja realização lhe parecia uma utopia. No entanto, conseguiu. E, confessa, os esforços não foram tão grandes. Para pagar o curso, sim, esses foram imensos. Recebeu a ajuda do pai e até de alguns parentes. Não encontrou, na verdade, grandes dificuldades para entrar e para sair da faculdade. Pouco ou nada estudava, mas passava de ano. Ouviu dizer que o interesse das faculdades era que as vagas fossem abertas. Por tal razão, as reprovações praticamente inexistiam. Com faltas abonadas e notas dadas, o curso foi galhardamente concluído.

Seus colegas diziam que o mercado de trabalho estava saturado. Abrir um escritório próprio estava fora de cogitação. Poderia até pensar em obter um financiamento bancário ou um adiantamento de salário para os primeiros alugueres e para os móveis. Mas, e depois, como manteria a sua família? Quem iria procurá-lo, se até os mais íntimos e ele próprio não acreditavam em sua capacidade profissional?

Tomou conhecimento da existência de um convênio mantido pela OAB com o governo do Estado, pelo qual os advogados prestavam assistência aos carentes. Mas, quando soube da remuneração, desistiu. Variava de R$ 800 a R$ 1.500 por mês. Mesmo assim, perto de 50 mil advogados estavam inscritos e, para boa parte, essa era a remuneração de subsistência.

Os anos se passaram até que foi alertado para a possibilidade de se tornar juiz de Direito. Mas jamais passaria no concurso. Sua aprovação no Exame da Ordem se deu porque o prestou em outro Estado e, posteriormente, requereu sua transferência para a O AB de São Paulo.

Quem lhe deu a idéia da magistratura esclareceu que não se estava referindo a concurso. Falava, sim, do quinto constitucional. O mesmo conhecido explicou-lhe do que se tratava.

Como seu maior desejo era mesmo ter segurança financeira, aposentadoria, as benesses que imaginava existirem e o status de juiz, ao preencher na OAB a ficha de inscrição para o quinto, fez questão de colocar, quanto à remuneração, para demonstrar desapego e desprendimento, "salário a combinar"!

A narrativa acima é ficção, salvo a parte final, a do salário. Essa é real. Ocorreu.

A situação contada é ficcional, embora retrate com exatidão a realidade do ensino jurídico ministrado em inúmeras faculdades, bem como reproduz a trágica situação de expressivo número de advogados. Ademais, mostra como o quinto constitucional está sendo encarado nos dias de hoje.

Um quinto das vagas dos tribunais será preenchido por advogados de notório saber jurídico e reputação ilibada e por membros do Ministério Público. A partir da Constituição de 1988, a Ordem passou a ter a atribuição de escolher uma lista sêxtupla, a ser submetida ao Poder Judiciário, para a elaboração de uma lista tríplice a ser encaminhada ao chefe do Poder Executivo, que nomeará o novo integrante da magistratura.

Antes, a escolha era feita pelos próprios tribunais, que convidavam advogados de destaque e projeção para integrarem a lista que seria enviada ao Executivo. Como se vê, os advogados não se candidatavam a uma vaga, eram convidados, e tal convite representava uma homenagem ao profissional que se consagrara após anos e anos de militância impecável, ética e tecnicamente. Note-se que, dessa forma, os tribunais chamavam a si a responsabilidade pela escolha.

Sem embargo de excelentes magistrados que o foram pelo quinto constitucional após 1988, o sistema atual possibilita ao advogado, apenas preenchido o requisito mínimo do tempo de militância - dez anos -, oferecer-se para ser juiz.

Vários candidatos, durante todos esses anos, pleitearam o quinto constitucional, após terem sido reprovados em vários concursos de ingresso na magistratura. Escolheram as portas do fundo dos tribunais para neles penetrarem.

Note-se que o requisito da reputação ilibada e do notório saber jurídico constitui letra morta. O candidato, em geral motivado pela real oportunidade de "se acertar" profissionalmente, não será o juiz desses requisitos, até porque, em regra, é desprovido de autocrítica.

Nova ressalva deve ser feita: vários candidatos ao quinto, alguns hoje magistrados, têm senso crítico; estavam e estão preparados para o mister de julgar e não estavam à cata de emprego.

Poder-se-á dizer que os critérios da reputação e do saber jurídico são aferidos pela Ordem, especialmente na audiência pública que promove para sabatinar os candidatos.

No entanto, não é isso que ocorre. E o problema não se circunscreve a esta ou àquela seccional, é nacional. Ademais, não é novo, surgiu com a alteração do sistema. Na verdade, a Ordem nada ou pouco avalia, pela simples razão de que o critério que impera é quase exclusivamente o político. Quem for amigo do rei entra na lista, quem não for, bem, esse deve aguardar a próxima gestão.

A escolha transformou-se em disputa eleitoral . Pede-se voto, cabala-se, grupos são organizados a favor deste ou daquele candidato. As lideranças testam o seu prestígio. Mas se nota que há um requisito precedente e inafastável: o candidato deve pertencer ao grupo político da situação ou este deve querer cooptá-lo. Preenchido esse critério, escolhe-se para se fazerem composições políticas ou para comemorar ajustes de amizade.

A magnitude da função jurisdicional e a relevância da advocacia como instituição indispensável à administração da justiça devem constituir motivos suficientes para que os dirigentes da Ordem afastem os critérios vigentes e rigorosamente atestem o notório saber e a reputação ilibada. Caso contrário, melhor será a volta ao sistema anterior, com a alteração da Carta, isso se quisermos manter o quinto constitucional.

Antônio Cláudio Mariz de Oliveira é advogado criminal
Publicado no Jornal O Estado de S. Paulo (02/04/2008)

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