Artigo: Frei Betto
A árvore e a floresta
Frei Betto - Escritor, é autor de Entre todos os homens (Ática), biografia de Jesus, entre outros livros
Cínica a moral usamericana. O prefeito de Nova York renuncia após o flagrarem nos braços de uma sofisticada rede de prostituição. Como se não bastasse a decepção de seus eleitores, submete a mulher à humilhação de postar-se ao seu lado, calada, enquanto ele faz o mea-culpa.
O vice assume e também vem a público confessar não ser nenhum santo. A diferença é que, agora, se trata de uma verdadeira terapia de casal em escala mundial. Os dois admitem, diante das câmeras, terem traído um ao outro. O que, sem dúvida, torna mais fácil o perdão. Só quem assume o próprio erro é capaz de perdoar o alheio. O fariseu, alerta Jesus, é capaz de ver o cisco no olho de outrem, mas não enxerga a trave no próprio (Mateus 7, 3).
A moral usamericana é profundamente marcada pela ideologia analítica, vê a árvore e não enxerga a floresta. Nixon caiu porque invadiu as instalações do Partido Democrata. Clinton desculpou-se diante da TV após praticar adultério com uma estagiária na Casa Branca. Eliot Spitzer deixa a administração de Nova York ao ser pego de calças nas mãos após gastar uma fortuna com prostitutas.
E a floresta? O que diz a moral made in USA em relação aos desrespeitos aos direitos humanos praticados em grande escala por Nixon e Clinton? Por que é considerado moral invadir o Iraque e provocar um genocídio (89 mil civis mortos e 4 mil militares ianques, desde 2003); praticar torturas na prisão de Abu Ghraib, em Bagdá; seqüestrar supostos terroristas na Europa e confiná-los no inferno carcerário da base naval de Guantánamo, alheia aos princípios do Direito? É moral manter um país, como Porto Rico, privado há 110 anos de sua soberania e independência? É moral sacrificar a pequena Cuba com um bloqueio que dura 48 anos?
Talvez a raiz dessa moral fundamentalista, que culpabiliza um desvio sexual e encara com condescendência um genocídio, decorra de uma leitura equivocada da Bíblia. Davi, o personagem bíblico de quem temos mais informações, é bom exemplo. Foi punido por cometer adultério com Betsabéia, mulher de Urias, morto por ordem do rei, interessado em facilitar seu acesso ao leito da mulher desejada (2 Samuel 11).
Davi era guerreiro, antes e depois de subir ao trono. Matou milhares de inimigos (os exércitos filisteu e moabita, 18 mil edomitas, 40 mil arameus etc.), sempre em nome de Deus. E não consta que se tenha arrependido, como no caso com Betsabéia, nem punido.
Eis um legado que certa exegese bíblica ainda nos impregna: matar um, faz de você um assassino; matar milhares, faz de você um herói. Bush que o diga. O homem mau dorme bem é o título de um filme de Akiro Kurosawa.
Enquanto nossa idéia de Deus permitir que Ele seja evocado como cúmplice de nossos interesses egoístas e mesquinhos, como controlar o petróleo do Oriente Médio, seguiremos fiéis à síndrome abraâmica do sacrifício — essa idéia de que Deus exigiu de Abraão sacrificar seu único filho, Isaac; não satisfeito, mais tarde sacrificou Jesus na cruz. Por um suposto bem maior — a democracia regida pelos donos do dinheiro — sacrifica-se uma nação.
Uma leitura mais contextualizada permite compreender que Javé não aceitou que, em nome de uma nova fé, a monoteísta, Abraão matasse Isaac, como prescreviam os cultos politeístas e seus ritos arcaicos de oblação das primícias. Javé fez ver a Abraão que Ele é o Deus da vida, e não da morte. Por isso salvou Isaac da miopia religiosa de Abraão (Gênesis 22).
Do mesmo modo, Jesus não morreu para aplacar a sede de sangue expiatório de um Deus que, ofendido, se transforma num homicida mais cruel que o rei Herodes. Jesus morreu assassinado por dois poderes políticos.
Ao contrário da moral made in USA, Jesus era todo perdão para com a mulher adúltera, o filho pródigo, a negação de Pedro, mas rigorosamente exigente para com aqueles que fazem do templo de Deus — o Universo, a Terra, a vida humana — um covil de ladrões. Em linguagem atual, o juízo de Deus é implacável quando a sacralidade da vida é preterida em prol dos interesses pecuniários do mercado.
Publicado hoje no Correio Braziliense
Frei Betto - Escritor, é autor de Entre todos os homens (Ática), biografia de Jesus, entre outros livros
Cínica a moral usamericana. O prefeito de Nova York renuncia após o flagrarem nos braços de uma sofisticada rede de prostituição. Como se não bastasse a decepção de seus eleitores, submete a mulher à humilhação de postar-se ao seu lado, calada, enquanto ele faz o mea-culpa.
O vice assume e também vem a público confessar não ser nenhum santo. A diferença é que, agora, se trata de uma verdadeira terapia de casal em escala mundial. Os dois admitem, diante das câmeras, terem traído um ao outro. O que, sem dúvida, torna mais fácil o perdão. Só quem assume o próprio erro é capaz de perdoar o alheio. O fariseu, alerta Jesus, é capaz de ver o cisco no olho de outrem, mas não enxerga a trave no próprio (Mateus 7, 3).
A moral usamericana é profundamente marcada pela ideologia analítica, vê a árvore e não enxerga a floresta. Nixon caiu porque invadiu as instalações do Partido Democrata. Clinton desculpou-se diante da TV após praticar adultério com uma estagiária na Casa Branca. Eliot Spitzer deixa a administração de Nova York ao ser pego de calças nas mãos após gastar uma fortuna com prostitutas.
E a floresta? O que diz a moral made in USA em relação aos desrespeitos aos direitos humanos praticados em grande escala por Nixon e Clinton? Por que é considerado moral invadir o Iraque e provocar um genocídio (89 mil civis mortos e 4 mil militares ianques, desde 2003); praticar torturas na prisão de Abu Ghraib, em Bagdá; seqüestrar supostos terroristas na Europa e confiná-los no inferno carcerário da base naval de Guantánamo, alheia aos princípios do Direito? É moral manter um país, como Porto Rico, privado há 110 anos de sua soberania e independência? É moral sacrificar a pequena Cuba com um bloqueio que dura 48 anos?
Talvez a raiz dessa moral fundamentalista, que culpabiliza um desvio sexual e encara com condescendência um genocídio, decorra de uma leitura equivocada da Bíblia. Davi, o personagem bíblico de quem temos mais informações, é bom exemplo. Foi punido por cometer adultério com Betsabéia, mulher de Urias, morto por ordem do rei, interessado em facilitar seu acesso ao leito da mulher desejada (2 Samuel 11).
Davi era guerreiro, antes e depois de subir ao trono. Matou milhares de inimigos (os exércitos filisteu e moabita, 18 mil edomitas, 40 mil arameus etc.), sempre em nome de Deus. E não consta que se tenha arrependido, como no caso com Betsabéia, nem punido.
Eis um legado que certa exegese bíblica ainda nos impregna: matar um, faz de você um assassino; matar milhares, faz de você um herói. Bush que o diga. O homem mau dorme bem é o título de um filme de Akiro Kurosawa.
Enquanto nossa idéia de Deus permitir que Ele seja evocado como cúmplice de nossos interesses egoístas e mesquinhos, como controlar o petróleo do Oriente Médio, seguiremos fiéis à síndrome abraâmica do sacrifício — essa idéia de que Deus exigiu de Abraão sacrificar seu único filho, Isaac; não satisfeito, mais tarde sacrificou Jesus na cruz. Por um suposto bem maior — a democracia regida pelos donos do dinheiro — sacrifica-se uma nação.
Uma leitura mais contextualizada permite compreender que Javé não aceitou que, em nome de uma nova fé, a monoteísta, Abraão matasse Isaac, como prescreviam os cultos politeístas e seus ritos arcaicos de oblação das primícias. Javé fez ver a Abraão que Ele é o Deus da vida, e não da morte. Por isso salvou Isaac da miopia religiosa de Abraão (Gênesis 22).
Do mesmo modo, Jesus não morreu para aplacar a sede de sangue expiatório de um Deus que, ofendido, se transforma num homicida mais cruel que o rei Herodes. Jesus morreu assassinado por dois poderes políticos.
Ao contrário da moral made in USA, Jesus era todo perdão para com a mulher adúltera, o filho pródigo, a negação de Pedro, mas rigorosamente exigente para com aqueles que fazem do templo de Deus — o Universo, a Terra, a vida humana — um covil de ladrões. Em linguagem atual, o juízo de Deus é implacável quando a sacralidade da vida é preterida em prol dos interesses pecuniários do mercado.
Publicado hoje no Correio Braziliense
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