O poço tem fundo

Por Antônio Machado - jornalista do Correio Braziliense

CRISE AMERICANA

Mérito do fundo de socorro à banca nos EUA é dar valor aos papéis ilíquidos que ameaçam a economia

Agora vai? Para a depressão econômica nos EUA, com desdobramento global, com quase certeza não mais. Recessão localizada, com muito sangue ainda rolando entre os bancos, é o mais provável. Tudo por arte do suado acordo nos EUA entre o governo Bush, republicano e em melancólico fim de mandato, e o Congresso de maioria democrata.

As resistências ao fundo de US$ 700 bilhões, idéia do secretário do Tesouro, Henry Paulson, e do presidente do Federal Reserve, Ben Bernanke, para resgatar parte dos títulos de alto risco encostados como lixo nos balanços da banca, cessaram depois que o presidente George W. Bush foi à TV declarar, com voz pausada, grave, que “sem ação imediata do Congresso” os EUA afundam em “pânico profundo”.

Bush entregou a pá de coveiro da economia ao Congresso, que não a aceitou, obviamente. Consciente de sua baixa credibilidade entre os americanos e da percepção de que o fundo salvador só serve para doar dinheiro bom do contribuinte a banqueiros falidos, convidou à Casa Branca os candidatos Barack Obama e John McCain e os líderes democratas e republicanos, na Câmara e no Senado, para avalizar a proposta. Seu legado de crises não o habilita a decidir mais nada.

O acordo surge com atraso de pelo menos uma década para estender a normalidade ao sistema financeiro crescido à margem dos bancos clássicos, que aceitam depósitos do público ao contrário do resto, capitalizado com empréstimos, depois de um ano de patética omissão do Federal Reserve e Tesouro sobre a lambança geral.

O que virá não será capaz de refundar os alicerces do dólar, mas pode sustar a crise. A qualidade do resgate é ruim. Mudou pouco na mão dos políticos, mais preocupados em inserir no projeto medidas para torná-lo menos antipático ao eleitor-contribuinte. Está longe de resolver os graves problemas da economia americana, deixados à nova administração, depois de novembro. Só que não apareceu nada melhor para resolver o problema, nem mesmo parcialmente.

O medo da depressão

“Nossas lideranças dizem: ‘Confiem em nós’”, analisa o presidente da Cumberland, uma firma de consultoria, David Kotok. “Deveríamos confiar? A resposta é não. Deveríamos aprovar os US$ 700 bilhões? A resposta é sim.” Suas premissas: a recuperação dos papéis seja zero ao Tesouro dos EUA. O custo médio de carregamento seja de 5% ao ano e nunca seja pago. Para o PIB de US$ 14 trilhões dos EUA, implicaria uma carga anual de juros de US$ 35 bilhões ao longo de trinta anos, quando seria absorvido pelo crescimento da economia.

“Parece-me que US$ 35 bilhões ao ano seja um preço muito baixo a pagar, se a depressão puder ser evitada”, diz Kotok, como também repercutiu o economista Rich Karlgaard, prestigiado colunista da revista Forbes, segundo o qual o fundo de US$ 700 bilhões equivale a 3% da capitalização de mercado total das empresas americanas. Um grão de areia comparado ao potencial de perda da riqueza dos EUA.

Ajuda será bem maior

A avaliação segura da capacidade do plano Paulson-Bernanke só vai ser possível quando se conhecer sua operacionalidade. A que preço os títulos ilíquidos serão absorvidos pelo Tesouro? Paulson queria ao par, o que representa um prêmio à banca. Tais papéis estão sem preço. O Tesouro recebê-los com desconto ou em troca de ações dos bancos socorridos implica em qualquer caso um deságio. De quanto? Não se sabe. Hoje valem zero. O mérito do fundo é dar valor a tais papéis, sendo esta a sua dimensão mais relevante, não a dotação.

Se o valor for descontado, os balanços da banca sofrerão deságio, o que Paulson quer evitar, para não sobrecarregar a necessidade de recapitalização do sistema. Sem deságio implica premiar o fracasso alcançado pela especulação. Em regra, acha-se que a US$ 0,20 seria uma troca mais justa. Nesse valor, a dotação de US$ 700 bilhões do fundo equivaleria, na prática, a US$ 3,5 trilhões. Dinheiro mais que suficiente, que se adiciona ao US$ 1 trilhão já desembolsado.

Respingos no Brasil

Os desdobramentos da crise financeira não são o único aspecto da crise americana a considerar ao se pôr o Brasil em perspectiva. O que o pacote deve tirar da frente é a ameaça da ruptura financeira global. O risco de recessão brava continua. Outros atos aprovados pelo Congresso também sugerem intervenções que terão repercussões aqui. Caiu, por exemplo, o veto à exploração de petróleo no mar, o que aumentará a disputa por equipamentos escassos para o pré-sal.

Plataformas de exploração são alugadas, não compradas. Há poucas disponíveis no mundo, razão pela qual o aumento das atividades no mar tornou este negócio mais rentável que o próprio petróleo. Elas custavam US$ 125 mil/dia quatro anos atrás. A Petrobras as aluga hoje por até US$ 650 mil/dia. A fase inicial do pré-sal exigirá 40 desses equipamentos. Doze estão contratados. Com os EUA também na disputa, faltará plataforma, o custo vai multiplicar-se, sem falar que o sucesso lá e aqui tenderá a baixar o preço do petróleo.

A volta do dirigismo aos EUA à custa do liberalismo vem merecendo comentários irônicos de expoentes da esquerda. Curioso. Se pegarem as rédeas da economia, os EUA se tornarão um competidor poderoso. Pegue-se outra decisão do Congresso: emprestar US$ 25 bilhões com juros subsidiados às combalidas GM, Ford e Chrysler. É capitalismo em sua versão mais bruta. E profissional. Amadores são os outros.

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