As ossadas do Araguaia
À espera de identificação há quase 20 anos, esqueletos guardados em armário refletem descaso do governo
LUTA ARMADA
Integrantes da guerrilha deflagrada pelo PCdoB no início dos anos 1970
Quase 25 anos depois de o último general deixar o poder, a ditadura militar brasileira ainda resiste a um enterro definitivo. Acreditava-se que os resquícios do autoritarismo seriam apenas fichas produzidas pelo serviço secreto do regime militar - agora abertas ao público. Mas a sala da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, no anexo do Ministério da Justiça, guarda mais do que prontuários. Num armário, em caixas de papelão, estão arquivadas pelo menos dez ossadas ainda não identificadas. Deteriorada pelo tempo, a maioria dos esqueletos, sob a responsabilidade da Secretaria Especial de Direitos Humanos, é proveniente de sepulturas abertas há quase duas décadas no cemitério de Xambioá, em Tocantins.
Segundo pesquisadores e integrantes da Comissão de Direitos Humanos da Câmara ouvidos por ISTOÉ, tudo leva a crer que os restos mortais sejam de integrantes do PCdoB que lutaram na Guerrilha do Araguaia e foram dados como desaparecidos, caso de Paulo Rodrigues, João Carlos Haas Sobrinho e Bérgson Gurjão Farias. "Em análise preliminar, um renomado perito avaliou que uma das ossadas pode ser mesmo de Bérgson", disse o ex-presidente da Comissão de Direitos Humanos, deputado Pompeu de Mattos (PDT-RS).
A conclusão sobre o material sairá nos próximos dias e poderá complicar o governo. As fotografias mostram a arcada dentária, o formato do crânio, tamanho e a mesma marca de um golpe que Bérgson teria levado durante uma passeata em Fortaleza (CE), em 1967. "Há 13 anos são esperadas informações sobre essas e outras identificações. O governo tem sido negligente", critica a ex-assessora da Comissão de Direitos Humanos, Myrian Alves, ligada ao PT. "Há setores do governo vinculados aos militares que resistem e dificultam uma solução", completa o presidente da Comissão de Anistia da Câmara, Daniel Almeida (PCdoB-BA).
Procurado por ISTOÉ, o presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, Marco Antonio Barbosa, demonstrou que o assunto não é considerado prioritário pelo governo. Não soube precisar a quantidade de esqueletos nem se estavam guardados em um armário de uma sala do órgão que preside. "Isso está lá na Câmara, não é?", perguntou. Um dia depois, a secretáriaexecutiva da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, Vera Rotta, confirmou à reportagem: "São dez ossadas e estão mesmo aqui conosco." O secretário-adjunto da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Rogério Sottili, negou que o desencontro de informações seja sinal de desinteresse. Mas confirma o mau estado dos esqueletos.
EVIDÊNCIAS Uma das ossadas pode ser do guerrilheiro Bérgson Farias
Retirados do cemitério de Xambioá nos anos de 1991, 1996 e 2001, os ossos foram submetidos a exames de DNA para serem cruzados com material sanguíneo de parentes dos mortos. "O contrato com a empresa responsável venceu e estamos fazendo nova licitação para que os trabalhos continuem", explica Sottili. O presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão, disse que o Ministério da Justiça irá criar uma unidade de antropologia e arqueologia forense por sugestão do Ministério Público Federal. E completou: "É dever do Estado respeitar o direito à verdade, à justiça e à reparação integral."