Vida: a força e o triz
Patrus Ananias, ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome
Artigo publicado no Jornal do Brasil, em 07 de fevereiro de 2010
O projeto da existência humana é tão fascinante quanto frágil. O mistério da vida, em suas múltiplas manifestações, nos impressiona pela força e vigor. Ao mesmo tempo, um simples descuido pode interromper um ciclo desse processo. Estamos todos sujeitos aos acidentes de variadas naturezas. Alguns, inclusive, fazem parte do contínuo movimento de renovação da vida no planeta. Já outros estão sob nossa responsabilidade e nos fazem pensar sobre o que queremos para o planeta e também para nosso futuro.
O mistério da morte faz parte da nossa experiência de vida. Diante dele, nos rendemos. No entanto, quando a morte chega precoce, a vida é violentamente cortada por nós mesmos ou por nossos iguais e o número desses casos dispara vertiginosamente, perde-se o mistério.
Fica somente o choque, e isso é um grande risco. Uma sucessão de choques pode paralisar, aumentar nossa impotência e diminuir a capacidade de refletir sobre o valor de uma vida e as inúmeras perspectivas de cada pessoa cumprir um destino que contribua para ampliar as possibilidades da condição humana.
É o que estamos assistindo.O Brasil segue uma tendência identificada pela Organização Mundial de Saúde em todas as demais partes do mundo: o crescimento do número de mortes por causas externas (agressão, trânsito, afogamento, desastres naturais etc.). Antes, as pessoas morriam mais por doenças infectocontagiosas.Agora, felizmente, o homem tem conseguido avanços significativos nessa área. No Brasil, é significativo o trabalho do SUS na área de prevenção, com ótimos resultados.Mas ainda temos muitos desafios.
A FAO estima que aproximadamente 1 bilhão de pessoas no mundo vivem em condições indignas e expostas aos riscos de morte por fome e desnutrição, que provocam muitas outras doenças. No Brasil, felizmente, estamos conseguindo vencer a fome e avançar no combate a essa forma perversa de violência social, com o conjunto de nossas políticas sociais. A violência física segue como um grande desafio para nós e para tantas outras regiões do planeta.
Entre as causas externas, a agressão é a que provoca maior número de mortes, seguida dos acidentes de trânsito.
De acordo com dados preliminares do Ministério da Saúde, em 2008 foram 39.076 homicídios a maioria são homens jovens, mortos por outros jovens e mais de 36 mil em acidentes automobilísticos. No trânsito, foram mais de 247 mil mortes em sete anos.
Números tão elevados revelam desprezo pela vida e uma absurda banalização da violência, perda de referência nos valores que nos orientam nesse mundo.
Interromper esse ciclo exige um esforço conjunto: Governo Federal junto com governos estaduais e municipais, envolvendo a sociedade, mas também cada pessoa em especial. A responsabilidade é coletiva, mas também individual, depende também de que cada um faça sua parte, reflita sobre valores e faça a opção de não matar.Essa responsabilidade implica, por exemplo, no comprometimento das instituições religiosas na propagação desses valores, mas igualmente das escolas e das famílias.Exige ainda dos meios de comunicação de massa, em especial da televisão e do rádio, que reflitam profundamente sobre seu papel e sua responsabilidade, como concessionários públicos, de não só informar, mas formar consciências e ajudar a colocar as relações humanas em um patamar eticamente superior.
“Viver é muito perigoso”, pontuava Guimarães Rosa pela boca de seu inesquecível Riobaldo. Mas o que vemos, e está na origem dessa avalanche de mortes precoces, é um total desrespeito a esse perigo. A velocidade é o item de sedução predominante nas peças publicitárias de automóveis. Um importante engenho humano se torna objeto de desejo justamente por aquilo que o transforma em arma contra o próprio criador.
Os números, por maiores e mais expressivos que sejam (e o são), ainda falam pouco. Devemos tentar um exercício de imaginação e pensar no que representa cada uma dessas mortes, a maioria terrivelmente precoce. Pensar nas vidas que poderiam ter sido e que não foram. De tudo que ficou impossibilitado de ser, de ver, de participar, de construir.
“Quando morrer, voltarei para buscar / Os instantes em que não vivi junto do mar”, diz um poema de Sophia Andresen.
Belo. Delicado. Acessível, porém, somente se tivermos tempo de firmar como registro sensível a experiência da vida, enraizando desejos na alma do tempo. Por isso a vida é tão rica, tão possível, tão forte.
Em nome dela, urge repensar valores e defender o direito de escrever com vagar nossa trajetória no mundo.