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Em visita ao Brasil, o juiz espanhol Baltasar Garzón defendeu punição penal para os crimes de tortura cometidos durante a ditadura militar no Brasil. O juiz Garzón é famoso por ter decretado, em 1998, a prisão do ditador chileno Augusto Pinochet. Segundo o juiz, quando se trata de crimes de lesa-humanidade, no caso da tortura e do desaparecimento forçado, existe uma obrigação moral e legal de se investigar. Para ele, está claramente estabelecido no direito internacional que é um crime é imprescritível. “A interpretação dos sistemas locais deve acomodar-se a esse critério", disse Garzón. O juiz chega ao Brasil em um momento de forte discussão sobre a revisão da Lei de Anistia, possível punição a torturadores e abertura dos arquivos da época da ditadura. Ele defendeu a abertura dos arquivos. “Não é uma questão política, ideológica, é uma questão reparadora". Ou seja, de recuperação da memória e da verdade. |
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Crime de tortura é crime contra a humanidade, não prescreve
Acompanho fatos relevantes a partir de abordagem jornalística, isenta e independente
Tortura no Brasil -- O Estado patrocinou e é leniente até hoje com essa chaga
Tortura e impunidade ontem e hoje
Andressa Caldas e Gustavo Mehl
Dona Maria de Lourdes* tentava visitar o filho preso, mas a permissão lhe era negada sob a alegação de que faltava um documento. Dona Iracema, por sua vez, esperava notícias do filho levado por policiais. As duas ficariam marcadas por assassinatos cometidos por agentes do Estado. Maria de Lourdes recebeu várias cartas em que o filho relatava os maus-tratos a que era submetido. Nas últimas, havia queixas de uma agressão específica: “Meu sangue já foi derramado covardemente. Levei uma paulada na cabeça, não de preso, não! Mas dos polícias”. Vinte e cinco dias depois, quando a mãe finalmente conseguiu autorização para visitá-lo, o filho já estava morto havia mais de duas semanas. No IML, dona Maria de Lourdes soube que, absurdamente, o detento já teria sido enterrado como indigente, não obstante estivesse sob a tutela do Estado. O corpo reapareceu em estado avançado de decomposição; no atestado de óbito, a causa mortis: traumatismo crânio encefálico por ação contundente.
O caso de dona Iracema guarda semelhanças. A mãe esperava junto da família por informações do paradeiro de seu filho. O genro de Iracema, delegado de polícia, entrou em contato com um colega, que conseguiu a notícia: o preso já estava morto; teria se suicidado um dia antes. No IML, a família foi informada de que o corpo não estava lá. O genro de dona Iracema conseguiu entrar e o encontrou em uma gaveta, com marcas de forte tortura.
Iracema Rocha Merlino morreu em 1995 sem conhecer a justiça. O filho era o jornalista Luis Eduardo da Rocha Merlino, torturado durante 24 horas ininterruptas na sede do DOI/Codi de São Paulo, em julho de 1971. Em abril de 2008, familiares entraram com uma ação civil contra Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-comandande do DOI/Codi. O processo não prevê indenização ou punição criminal, busca apenas o que dona Iracema sempre quis: apuração sobre o que aconteceu com o filho e o reconhecimento, por parte da Justiça, da responsabilidade do coronel Ustra.
A condenação dos torturadores da ditadura militar é passo indispensável para a consolidação de uma sociedade verdadeiramente democrática e de um Estado comprometido com os direitos humanos. Dar esse passo não significa, porém, ir contra a Lei de Anistia de 1979, que abrange apenas crimes políticos e eleitorais. Tortura e desaparecimento forçado não se encaixam nessas definições e, portanto, não podem ser anistiados. Segundo determinação da Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA, são crimes contra a humanidade e são imprescritíveis.
O empenho de alguns militares e de setores da mídia em manter o assunto repousado às escuras é análogo ao esforço de agentes públicos em acobertar certos crimes cometidos nos dias de hoje. O filho de dona Maria de Lourdes, por exemplo, foi assassinado em julho de 2006 em um presídio do Rio de Janeiro. Passados mais de dois anos de sua morte, o caso ainda está em fase de inquérito policial. Desde o início, Maria de Lourdes sente que, às vezes, seu filho é tratado não como a vítima, mas como o réu.
Foi essa a impressão que teve quando foi recebida de maneira agressiva pela pessoa que tem a obrigação de investigar o assassinato cometido nas dependências de uma casa de custódia do Estado. A sala da representante do Ministério Público tinha fotografias de policiais armados e até uma miniatura do caveirão, o que, de alguma forma, reforçou em Maria de Lourdes a sensação de hostilidade e desamparo. Somando essa recepção à ocultação inicial da morte do filho, à declaração mentirosa da Subsecretaria Geral de Administração Penitenciária do Estado (que afirmou que a causa mortis tinha sido um aneurisma cerebral), à ocultação do inquérito policial até março de 2008, à informação falsa de que a mãe já havia sido chamada a depor e não havia comparecido, e à morosidade do delegado e da promotora para ouvir testemunhas, fica evidente a condescendência que partes da polícia e da Justiça têm com crimes cometidos por representantes do Estado.
Defender a responsabilização jurídica dos agentes públicos que cometeram crimes de tortura e desaparecimento forçado significa mais do que resgatar as verdades histórica e jurídica da época da ditadura. Significa um primeiro passo rumo à conscientização ampla de que o Estado não pode, em hipótese alguma, promover ou compactuar com qualquer espécie de crime. Manter os culpados escondidos é jogar os cacos para baixo do tapete e louvar a impunidade no Brasil, a de ontem e a de hoje.
*nome fictício.
Andressa Caldas e Gustavo Mehl
Dona Maria de Lourdes* tentava visitar o filho preso, mas a permissão lhe era negada sob a alegação de que faltava um documento. Dona Iracema, por sua vez, esperava notícias do filho levado por policiais. As duas ficariam marcadas por assassinatos cometidos por agentes do Estado. Maria de Lourdes recebeu várias cartas em que o filho relatava os maus-tratos a que era submetido. Nas últimas, havia queixas de uma agressão específica: “Meu sangue já foi derramado covardemente. Levei uma paulada na cabeça, não de preso, não! Mas dos polícias”. Vinte e cinco dias depois, quando a mãe finalmente conseguiu autorização para visitá-lo, o filho já estava morto havia mais de duas semanas. No IML, dona Maria de Lourdes soube que, absurdamente, o detento já teria sido enterrado como indigente, não obstante estivesse sob a tutela do Estado. O corpo reapareceu em estado avançado de decomposição; no atestado de óbito, a causa mortis: traumatismo crânio encefálico por ação contundente.
O caso de dona Iracema guarda semelhanças. A mãe esperava junto da família por informações do paradeiro de seu filho. O genro de Iracema, delegado de polícia, entrou em contato com um colega, que conseguiu a notícia: o preso já estava morto; teria se suicidado um dia antes. No IML, a família foi informada de que o corpo não estava lá. O genro de dona Iracema conseguiu entrar e o encontrou em uma gaveta, com marcas de forte tortura.
Iracema Rocha Merlino morreu em 1995 sem conhecer a justiça. O filho era o jornalista Luis Eduardo da Rocha Merlino, torturado durante 24 horas ininterruptas na sede do DOI/Codi de São Paulo, em julho de 1971. Em abril de 2008, familiares entraram com uma ação civil contra Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-comandande do DOI/Codi. O processo não prevê indenização ou punição criminal, busca apenas o que dona Iracema sempre quis: apuração sobre o que aconteceu com o filho e o reconhecimento, por parte da Justiça, da responsabilidade do coronel Ustra.
A condenação dos torturadores da ditadura militar é passo indispensável para a consolidação de uma sociedade verdadeiramente democrática e de um Estado comprometido com os direitos humanos. Dar esse passo não significa, porém, ir contra a Lei de Anistia de 1979, que abrange apenas crimes políticos e eleitorais. Tortura e desaparecimento forçado não se encaixam nessas definições e, portanto, não podem ser anistiados. Segundo determinação da Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA, são crimes contra a humanidade e são imprescritíveis.
O empenho de alguns militares e de setores da mídia em manter o assunto repousado às escuras é análogo ao esforço de agentes públicos em acobertar certos crimes cometidos nos dias de hoje. O filho de dona Maria de Lourdes, por exemplo, foi assassinado em julho de 2006 em um presídio do Rio de Janeiro. Passados mais de dois anos de sua morte, o caso ainda está em fase de inquérito policial. Desde o início, Maria de Lourdes sente que, às vezes, seu filho é tratado não como a vítima, mas como o réu.
Foi essa a impressão que teve quando foi recebida de maneira agressiva pela pessoa que tem a obrigação de investigar o assassinato cometido nas dependências de uma casa de custódia do Estado. A sala da representante do Ministério Público tinha fotografias de policiais armados e até uma miniatura do caveirão, o que, de alguma forma, reforçou em Maria de Lourdes a sensação de hostilidade e desamparo. Somando essa recepção à ocultação inicial da morte do filho, à declaração mentirosa da Subsecretaria Geral de Administração Penitenciária do Estado (que afirmou que a causa mortis tinha sido um aneurisma cerebral), à ocultação do inquérito policial até março de 2008, à informação falsa de que a mãe já havia sido chamada a depor e não havia comparecido, e à morosidade do delegado e da promotora para ouvir testemunhas, fica evidente a condescendência que partes da polícia e da Justiça têm com crimes cometidos por representantes do Estado.
Defender a responsabilização jurídica dos agentes públicos que cometeram crimes de tortura e desaparecimento forçado significa mais do que resgatar as verdades histórica e jurídica da época da ditadura. Significa um primeiro passo rumo à conscientização ampla de que o Estado não pode, em hipótese alguma, promover ou compactuar com qualquer espécie de crime. Manter os culpados escondidos é jogar os cacos para baixo do tapete e louvar a impunidade no Brasil, a de ontem e a de hoje.
*nome fictício.
Fonte: Correio Braziliense.
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Tortura no Brasil
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