É estranha a insistência com que se repete que o desmatamento da Amazônia é a causa de três quartos das emissões de carbono do Brasil. Talvez até possa ter sido verdade no início dos anos 1990, conforme o único inventário nacional, muito embora não existisse à época capacidade técnica para avaliar certos tipos de emissão. Passados 15 anos, é uma afirmação inteiramente falsa.
O aumento das emissões extradesmatamento foi de 45% entre 1994 e 2005, principalmente porque as do setor de transportes saltaram de 25,4 para 36,9 em milhões de toneladas (+45%), as do setor industrial de 19,7 para 27,8 (+41%) e as do setor energético de 7,6 para 15,3 (+101%). Para que contribuição proporcional do desmatamento amazônico pudesse ter se mantido nos 75%, ela deveria ter aumentado no mesmo ritmo. Sabe-se, contudo, que em 1994 e em 2005 a área desmatada foi a mesma: em torno dos 14 mil km2. É verdade que, entre essas duas datas, houve momentos em que a derrubada chegou a ser duas vezes maior. Mas também é verdade que desde 2005 ela não parou de minguar, aproximando-se agora de 11 mil km2. Bem menos, portanto, que os 14 mil km2 de 1992/94, e quase um terço dos mais de 29 mil km2 de 1994/95.
Virou pura miragem essa ladainha dos 75% desde que os cálculos das emissões extradesmatamento feitos para o MCT pela organização Economia & Energia puderam ser comparados às imagens de satélite processadas pelo programa Prodes, do Inpe. Todavia, muita gente só vê vantagens políticas em alimentá-la, provavelmente para tentar fazer crer que o Brasil poderá cortar drasticamente suas emissões se os países ricos bancarem o combate ao desmatamento.
Há dois sérios problemas nessa ingenuidade que se pretende esperteza. O primeiro é subestimar as dificuldades que o Brasil enfrentará para conter suas emissões depois que tiver conseguido minimizar os desmatamentos. Certamente, muita gente ainda não se deu conta de que as demais emissões do Brasil logo empatarão com as da Austrália. Também não tardará para que se aproximem das do Canadá. Tanto quanto nesses países, somente sérias inovações tecnológicas poderão reduzir as emissões causadas por indústrias, meios de transporte e geração de eletricidade.
O segundo problema se refere à própria Amazônia. Se a infantilidade da sociedade brasileira não a fizesse tão indiferente ao que por lá ocorre, essa região já teria um bom esquema de governança baseado no tão falado quanto pouco praticado zoneamento ecológico-econômico. Seu anárquico desmatamento já seria página virada há muito tempo, e por diversas razões que antecedem a necessidade de reduzir emissões de carbono.
-------------------------------------------------------------------------------- Não se deve subestimar as dificuldades que o país terá para conter suas emissões depois que tiver conseguido minimizar os desmatamentos --------------------------------------------------------------------------------
Não adianta culpar governos, pois a valorização da biodiversidade, dos recursos hídricos e de inúmeras outras regulações sistêmicas exercidas pelos ecossistemas amazônicos pouco dependem dos políticos de plantão. O drama é que mesmo o segmento mais educado da opinião pública assiste passivamente à devastação dessas florestas, assim como fez com o Cerrado, Caatinga e Mata Atlântica. As florestas da Amazônia estão sendo derrubadas desde a ditadura militar com a complacência da sociedade brasileira, exatamente como as florestas do Pontal do Paranapanema foram criminosamente derrubadas durante governos do tipo Ademar de Barros ou Jânio Quadros, com inteira complacência da sociedade paulista.
Mas a esperança de que em algum momento surgiria um basta a tanta passividade foi confirmada, no início de outubro de 2007, pela proposta de "Pacto Nacional pela Valorização da Floresta e pelo Fim do Desmatamento na Amazônia". Tudo precisa ser feito para que essa caravana passe, mesmo que certos cães já comecem a ladrar.
Com o objetivo de zerar o desmatamento até 2015, um amplo compromisso - entre governos, empresas e terceiro setor - está sendo articulado por nove entidades: Amigos da Terra, CI, Greenpeace, ICV, Imazon, Ipam, ISA, TNC, e WWF-Brasil. E se apóia em estudo da Macrotempo Consultoria Econômica, coordenado por Carlos Eduardo F. Young, professor da FEA/UFRJ.
A ambição é pagar pela redução do desmatamento e pelos serviços ambientais prestados pela floresta, com três alvos essenciais: a) fortalecimento da governança florestal (monitoramento, controle e fiscalização; promoção do licenciamento rural e ambiental para propriedades rurais; criação das unidades de conservação e terras indígenas); b) uso de áreas já desmatadas; e c) compensação financeira dos atores sociais responsáveis pela manutenção das florestas (povos indígenas, comunidades locais, populações tradicionais, agricultores familiares e produtores rurais).
Custará R$ 1 bilhão por ano até 2015, dos quais 76% virão do Orçamento Geral da União e o restante será obtido de duas maneiras pelos governos estaduais: a) criação de uma Cide-Ambiental (Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico-Ambiental), imposto federal cobrado sobre o valor adicionado de atividades que geram a deterioração ambiental, principalmente firmas do agronegócio, madeireiras e guzeiras; b) comprometimento de 1% adicional da receita do ICMS dos Estados da Amazônia Legal.
Na operacionalização do Pacto, a CEF deve ajudar o Basa, com sua capilaridade e seu histórico de relacionamento com as prefeituras. Mas caberá ao BNDES o papel de captar recursos privados, internos e externos. Além de manter o relacionamento com os organismos internacionais, o BNDES poderá estruturar três esquemas complementares: a) um "fundo de doações", com objetivo de incentivar a preservação da floresta, via remuneração aos "fiscais da natureza" nos moldes do Bolsa Floresta; b) Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDC), que antecipem receitas de créditos de carbono a projetos de exploração sustentável, diretamente ou via repasses a fundos estaduais, o que lhe dará um formato de "fundo de fundos"; c) uma Sociedade de Propósito Específico (SPE) para promover atividades responsáveis do ponto de vista socioambiental em áreas já desmatadas.
É fulminante o choque de lucidez do Pacto contra a indigência da ladainha.
José Eli da Veiga professor titular do departamento de economia da FEA/USP e autor de "A Emergência Socioambiental" (Ed. Senac, 2007), escreve mensalmente às terças e excepcionalmente nesta quinta. Página web: www.zeeli.pro.br |
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