Editorial – Uma empreiteira no circuito

O Estado de S. Paulo

O que mais chama a atenção nas impropriedades do clã Sarney que não cessam de vir à luz é a despreocupação com as marcas comprometedoras de suas ações. Pessoas comuns, como disse o presidente Lula para delas distinguir a especial figura do senador maranhense, geralmente cuidam de salvar as aparências para encobrir os vestígios de suas malfeitorias. Sabem quando as cometem e sabem que algum risco existe de serem chamadas a prestar contas por isso. As outras, aleitadas na cultura do privilégio, praticam impropriedades, ou coisa pior, com uma desenvoltura que só se explica pelo senso da própria incolumidade. De reincidência em reincidência, acabam perdendo a noção do certo e do errado, transformando a imoralidade em amoralismo.

O que se publicou nos últimos meses sobre a abastada crônica dos desvios de conduta do atual presidente do Senado - e os seus protestos de inocência em relação a cada um deles - se encaixa nessa perspectiva: o nepotismo, os favores aos apaniguados, as lambanças com recursos alheios, a apropriação privada de bens públicos. Em suma, os traços inconfundíveis da política patrimonialista à sombra da qual percorreu uma trajetória de 55 anos que ele hoje invoca para se considerar inimputável. Se tudo é natural, que mal haveria em recorrer a uma empreiteira para comprar "secretamente" imóveis para uso da família? E que mal haveria no fato de essa empreiteira fazer excelentes negócios no setor elétrico? Decerto a presença de apadrinhados de Sarney em postos decisivos do setor não tem nada que ver com isso.

A história chega a ser singela. Em 2006, a família resolveu ter mais dois apartamentos no prédio da Alameda Franca, em São Paulo, onde é dona de um pied-à-terre desde 1979, em nome de Fernando Sarney. Num caso, o proprietário do apartamento 22 foi procurado pelo neto do senador, o economista José Adriano Cordeiro Sarney, filho mais velho do deputado Sarney Filho, o Zequinha. (José Adriano frequentou recentemente o noticiário como sócio da empresa que intermediou R$ 1,2 bilhão em empréstimos consignados junto a 20 instituições bancárias para funcionários do Senado.) Dias depois, entrou em cena Maria Rosane Frota Cabral, irmã e sócia de Rogério Frota na empreiteira Aracati Construções, que hoje se chama Holdenn Construções.

Rogério, um cearense radicado no Maranhão, se tornou amigo próximo de Zequinha. "Por alguma razão, não queriam que o sobrenome Sarney aparecesse", percebeu o vendedor, que passou a escritura no saguão do Aeroporto de Congonhas a um tabelião de Sorocaba.

No segundo caso, dez meses depois, sabendo que outro proprietário pensava em vender o seu apartamento, o 32, o zelador do edifício o abordou. "Ele me disse que o senador Sarney, que já tinha dois apartamentos no prédio, queria um terceiro, para um assessor dele", contou ao Estado. A partir daí, o padrão se repetiu: depois de uma visita do empreiteiro Frota, a sua irmã fechou o negócio e passou a escritura com o mesmo tabelião de Sorocaba. Os dois imóveis foram e continuam registrados em nome da Aracati. Zequinha diz que o dono de fato do 22 é ele e que o declarou à Receita - uma anomalia. Diz também que o 32 "não nos pertence". Não é o que acham os moradores e funcionários do edifício. E o próprio senador se hospedou nele em junho, quando ficou em São Paulo acompanhando a convalescença da filha Roseana depois de uma operação. Mas o que os Sarneys dizem muitas vezes não passa pela prova dos fatos.

Depois que este jornal revelou, em 10 de junho, o escândalo dos atos administrativos secretos no Senado, o titular da Casa afirmou textualmente: "Eu não sei o que é ato secreto." Na sexta-feira passada, o ex-diretor de Recursos Humanos Ralph Siqueira relatou ao Estado que, em fins de maio, falou a Sarney da existência dos atos secretos. "Ele sabia", contou. O senador, portanto, mentiu - como havia mentido ao negar que tivesse poderes decisórios na fundação que leva o seu nome, da qual foram desviados R$ 500 mil de um patrocínio de R$ 1,3 milhão da Petrobrás. Os atentados de Sarney ao decoro parlamentar se acumulam, portanto. Há menos de dois anos, convém lembrar, Renan Calheiros teve de renunciar à presidência da Casa para não ser cassado depois que se descobriu que o lobista de uma empreiteira pagava despesas da mãe de um de seus filhos. "Quantas denúncias mais ele aguenta?", pergunta o senador Demóstenes Torres.

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