Suicídio institucional
Merval Pereira – O Globo
O arquivamento sumário das denúncias e representações contra o presidente do Senado, José Sarney, sem que nem mesmo o Conselho de Ética tenha se reunido, por decisão unilateral do senador sem votos do PMDB do Rio Paulo Duque, e o desaparecimento dos anais do Senado do trecho da fala do senador Renan Calheiros em que ele se dirige com palavrões ao senador tucano Tasso Jereissati são faces da mesma moeda, a truculência política em favor da manutenção da situação atual, a política arcaica tentando impedir a renovação dos costumes
O professor de filosofia da Unicamp Roberto Romano considera que a defesa incondicional da permanência do senador José Sarney na presidência do Senado “é suicida em termos institucionais”. O que ele considera muito grave “é essa prática de legisladores desacreditarem a lei. A lei não pode ser um ídolo imóvel, como dizia Platão, tem que ser uma coisa viva.
Mas você não pode dizer que a lei não vale, ou só vale para alguns”. Que o presidente Lula tenha dito que Sarney não é uma pessoa comum, Roberto Romano acha normal dentro das circunstâncias, “mas que uma classe inteira pense assim é preocupante”.
Especialmente, diz ele, os que não têm voto, como os suplentes de senador Wellington Salgado, que faz parte da “tropa de choque” governista, e Paulo Duque, o presidente do Conselho de Ética que arquivou todas as representações contra Sarney.
“Esses são os piores, a cicatriz do que há de mais doente no Senado”.
Uma dimensão antropológica que Romano gosta de analisar é a dos mitos, e ele adverte que, “quando você ataca um mito, como foi o caso do senador Pedro Simon, você já de antemão tem uma parcela forte da população contra você.
“Aquela demonstração explícita de falta de respeito, de violência, de truculência, de chantagem, cria um clima desfavorável a quem está atacando o mito”.
Para Roberto Romano, “eles estão afundando a legitimidade do Senado e confirmando todos os estereótipos, o que é muito preocupante”.
O ataque aos jornais é desesperado, segundo ele: “Uma hora o Mão Santa (senador do PMDB pelo Piauí) usa jornais para falar da corrupção no Piauí, e no mesmo instante o Paulo Duque arquiva as representações contra Sarney por que são baseadas em jornais. Fica claro que eles estão batendo de frente com a opinião pública por uma causa que não tem tamanha justificativa”.
Roberto Romano acha que “essa defesa intransigente do Sarney por causa do esquema de campanha da Dilma Rousseff em 2010 é estranha, porque em política não existem espaços vazios que não sejam ocupados, a qualquer momento um fato novo pode aparecer”.
Ele cita o exemplo da possível candidatura da senadora Marina Silva, que “abalou a estratégia inteira, mostrando sua fragilidade”.
O professor de filosofia da Unicamp acha que entramos em um terreno perigoso quando “já há sugestões de se acabar com o Senado”.
Isso traz em seu bojo, diz ele, a sequência lógica de que não precisamos de Congresso. “E nós temos uma longa tradição ética de extrema direita na cultura européia e na brasileira inclusive, o positivismo é uma delas, que desacredita a instituição parlamentar como inútil, que só serve para debater, e com isso vem o elogio da ditadura. E nesse momento, com Chavez no horizonte, com seus Evos Morales, os Correa, nós sabemos em que isso pode redundar”, diz Roberto Romano.
Outro aspecto que o deixa “enojado” é a prática da chantagem.
“Usa um instrumento importante como a representação no Conselho de Ética e o banaliza com a total falta de valores, com tentativa de calar e depois de retaliar”.
Para ele, esse procedimento “não tem nenhuma diferença em termos éticos do sequestro, da ameaça, você está tentando retirar ou o corpo ou a alma do indivíduo de circulação”.
O ex-ministro Marcilio Marques Moreira, na sua experiência como presidente do Conselho de Ética Pública, lembra que “os próprios códigos de ética nos Estados Unidos vêm sendo reforçados desde o primeiro, que foi do presidente Kennedy”.
No Brasil, “talvez por ser uma sociedade mais patrimonialista, que confunde, como diz o Roberto da Matta, a casa com a rua”, a evolução tem sido mais lenta, comenta.
Na experiência que teve, Marcílio diz que nos níveis superiores do governo há uma resistência maior, mas que não é homogênea. “Havia muitos ministros, presidentes de empresas, que eram muito respeitadores das normas, muito rigorosos consigo mesmo”.
Mas o respeito às normas era muito maior, ele admite, nos níveis mais baixos. “A autoridade tem que dar o exemplo.” Já o presidente da Academia Brasileira de Filosofia, João Ricardo Moderno, professor da Uerj, considera que a crise política tem também a origem em uma causa moral: “Temos que infundir valores da cidadania desde a educação de base, reformar a moralidade do país”.
Ele lembra que, desde a crise dos anões do Orçamento, “imaginávamos que esses problemas estariam sendo superados, mas depois tivemos o Collor e também pensávamos que tudo mudaria”.
A reforma da administração pública não aconteceu, e criaram-se “mecanismos mais sofisticados, até mesmo decretos secretos. Uma mentalidade predadora sem paralelos, parece que não tem fim”.
Ele considera que “o povo brasileiro é muito melhor do que sua representação política do ponto de vista moral e ético” e diz que Brasília “é como se fosse uma vida paralela”.
A megalomania, expressa nos prédios suntuosos e nas mordomias de Brasília, “é uma face da mitomania, que se tornou sistêmica”, analisa Moderno, para quem a transferência da capital para Brasília “multiplicou essa cultura no restante do país”. Do ponto de vista moral, diz ele, o que acontece no Senado e em Brasília de maneira geral “é uma fraude, não corresponde ao que é o Brasil”.
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