''A menor nódoa destrói a maior alvura''

Gaudêncio Torquato

No afã de se defender da artilharia que atinge a imagem do Senado, o senador José Sarney fez emotiva peroração em que resgata a trajetória política, enxerga interesses escusos de "grupos econômicos, radicais da mídia e radicais corporativistas" e insere a bateria de denúncias na moldura da crise das democracias representativas. Antes de um mergulho no desabafo de um político com cravados 60 anos de vida pública, convém lembrar o que dizia o genial Machado de Assis, por trás de seu pincenê: "Há cousas em que a observação desmente a teoria." A respeito do passado do ex-presidente da República, particularmente no papel que desempenhou no ciclo recente da redemocratização do País, o aforismo pode não ser adequado. A observação permite confirmar que passagens de sua biografia merecem aplausos. O que não é plausível - e nesse caso vale a sentença machadiana - é substituir a parte pelo todo e, mais, embaralhar as cartas do tempo.
É inimaginável que se possam atribuir os casos críticos que assolam o Senado exclusivamente ao presidente Sarney. Se sua figura está no meio da fogueira, é porque os fatos impactantes vieram à luz sob seu comando. Vale explicar que ele conserva a aura de um homem público que preza, mais que outros, a liturgia do poder. Ademais, ao exercer pela terceira vez o cargo de presidente da Câmara Alta, esse maranhense passa a ideia de um dos homens mais poderosos da República, posição corroborada pela extensão de seus domínios em searas da administração pública. Assim, qualquer barulho em sua proximidade tende a atrair maior atenção da mídia e mais eco na sociedade. Sarney, que também é jornalista, sabe que os balões da opinião pública se enchem com a fumaça de grandes fogueiras. E deve compreender que sua figura se encaixa inteiramente no slogan de um pesado sabonete dos anos 60: "Vale quanto pesa."
Tem até certa razão quando afirma que a crise não é dele, mas do Senado. Melhor dizendo, a crise instalou-se, há muito tempo, na esfera política. Ou, para seguir sua trilha, é da democracia representativa. Mas tal assertiva não garante que eventuais desmandos na instituição política tupiniquim decorram de disfunções que se espraiam na textura das democracias contemporâneas. É um desvio argumentativo tomar a parte pelo todo. O Legislativo, é bem verdade, perde força e substância nos quadrantes mundiais por conta dos fenômenos que apontam para a deterioração do sistema de representação, principalmente a partir da queda do Muro de Berlim, em novembro de 1989: banalização da política, declínio das ideologias, esvaziamento e pasteurização dos partidos, arrefecimento do ânimo dos eleitores e personalização do poder.
Esse é o traçado da crise que cerca a representação política. Há, ainda, um componente de cunho econômico que afeta a vida pública: a crise econômica mundial. O estouro da "boiada financeira" fez emergir novas condicionantes, entre as quais o perfil de um Estado com maior poder para controlar as forças do mercado. O inusitado é que esse novo paradigma viceja no seio das democracias liberais e, mais exatamente, nos Estados Unidos, cujo modelo é citado como exemplo para as nações. O efeito da catástrofe sobre os eixos democráticos se faz sentir no pulso mais enérgico do Poder Executivo, que passa a interferir de maneira mais forte na economia e a ditar novos rumos. Basta ver, nos EUA, Barack Obama tirando da cartola o maior leque de reformas econômicas desde os anos 1930. No Brasil, é sabido que o Executivo, entre os Poderes, é que dá mais cartas. Aliás, cheques. Donde se extrai a imagem de um corpo parlamentar a reboque do insuperável presidencialismo brasileiro.
Em suma, a crise junta no mesmo caldeirão ingredientes econômicos e um caldo político requentado. Descerrando a placa na parede dos sistemas ocidentais, leem-se as promessas não cumpridas pela democracia, tão enfatizadas por Norberto Bobbio: a educação para a cidadania deixa a desejar, o acesso de todos à Justiça é uma quimera, o combate ao poder invisível pelo Estado é uma frustração. O acervo de problemas encontra terreno fértil para se expandir em países como o Brasil. Por aqui, a semente da contaminação tem o nome de patrimonialismo, a apropriação da coisa pública por entes privados. O bicho tem-se propagado entre nós de maneira geométrica porque o País virou, sob o mando lulista, um gigantesco balcão eleitoral. As mazelas do passado - fisiologismo, mandonismo, grupismo - recebem vitaminas na farmácia de trocas e recompensas. E é nesse contrapé que figuram as estruturas política e governamental, os líderes, as instituições políticas e sociais, entre elas o Senado.
O que deveriam fazer todos esses atores para sair da crise? Procurar uma fresta na escuridão. E a fresta aponta para reformas. É improvável que, para atender 81 senadores, sejam necessários 10 mil funcionários. José Sarney, pelo poder que detém e pelo respeito que impõe aos pares, poderia liderar um amplo movimento pela modernização do Parlamento. Se assim o fizesse, não enfrentaria a bateria crítica que enlameia sua imagem. Seria aplaudido. Deveria extirpar quaisquer indícios de nepotismo na administração pública. Prefere, porém, atribuir a culpa a atores externos - "grupos econômicos, radicais corporativistas e radicais da mídia". É oportuno lembrar ao senador-escritor que a sociedade brasileira, por meio de seus núcleos representativos, e seguindo uma tendência internacional, aprumou o andar após a Constituição de 1988, passando a exercer forte pressão sobre o Congresso. Não se conforma em vê-lo submetido a um corredor polonês. No mais, a organização social está em ebulição. Até para suprir os vácuos abertos pelo sistema parlamentar. Na ausência de respostas adequadas, os grupamentos mobilizam-se. Sem radicalização, que existe apenas em um ou outro movimento.
Por último, mais um aforismo machadiano: "A menor nódoa destrói a maior alvura." Não há passado que resista às intempéries do presente.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político e de comunicação.

Fonte: O Estado de S. Paulo.

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