Células-tronco – a sociedade não pode ficar emparedada entre a ciência e o fundamentalismo religioso

Artigo - Pluralismo moral no debate

Com relação à utilização de células-tronco de embriões humanos para pesquisas seria desejável que não houvesse imposição moral de qualquer interesse sobre outro, seja ele científico, religioso, jurídico ou político

A forte expectativa da sociedade brasileira e da comunidade internacional em torno da decisão do Supremo Tribunal Federal sobre as pesquisas com células-tronco embrionárias revela a importância que o tema tem para a vida das pessoas, para a ciência e para o próprio futuro da humanidade. Com as recentes discussões desenvolvidas no Judiciário, das quais os brasileiros têm participado de modo indireto e que têm chamado a atenção da imprensa mundial, o que surpreende é o silêncio em relação a três declarações internacionais produzidas recentemente e vinculadas ao assunto — seja por parte dos tribunos, dos cientistas ou da própria sociedade civil organizada —, apesar do forte aval dado pelo Brasil à sua criação e ratificação.

Sem entrar no mérito da Ação Direta de Inconstitucionalidade que tramita no STF e divide opiniões entre os diferentes setores da sociedade, o que causa estranheza nesse saudável debate democrático é o fato de ele não estar levando em consideração os textos referenciais acordados internacionalmente que tratam da bioética, da genética e dos direitos humanos. Como organismo oficial das Nações Unidas incumbido da análise e discussão dos temas relacionados à educação, à ciência e à cultura, a Unesco tem como responsabilidade neste momento lembrar as bases conceituais e os objetivos de tais declarações de modo a contribuir para uma visão mais transdisciplinar e pluralística das questões bioéticas, que são de interesse da sociedade como um todo.

Desde a última década, vêm sendo empreendidos esforços internacionais na construção de caminhos referenciais para a comunidade das nações em relação aos avanços da tecnologia biomédica e ao controle ético da qualidade da vida humana de modo geral. Inicialmente, em 1997, foi lançada a Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos, que ofereceu referenciais concretos para os países interessados em regulamentar o assunto, principalmente em relação aos direitos naturais das pessoas, ao desenvolvimento das pesquisas e às condições de exercício da própria atividade científica neste campo do conhecimento.

Em 2003, foi promulgada a Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos, que teve como preocupação garantir o indispensável respeito à individualidade e confidencialidade no trato público e privado das informações genéticas de toda e qualquer pessoa. Esse documento propôs o compromisso da humanidade em zelar pelo respeito à dignidade humana e às liberdades fundamentais na coleta, tratamento, utilização e conservação dos dados genéticos da nossa espécie, atendendo a imperativos de igualdade, justiça e solidariedade.

Mais recentemente, em 2005, depois de quase três anos de intensas discussões e com o referendo de 191 países, entre eles o Brasil, foi aprovada a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. Essa declaração, entendida como o documento mais completo construído no presente século e relacionado com o tema, ampliou a pauta da disciplina para além dos campos biomédico e biotecnológico, incorporando ao seu conteúdo as questões sociais (pobreza, violência), sanitárias (acesso à saúde, medicamentos e novas tecnologias) e ambientais (sustentabilidade). A declaração reforça a concepção contemporânea de que os temas biomédicos não podem ser tratados exclusivamente na esfera biotecnocientífica pelas conseqüências sociais e políticas decorrentes da aplicação das novas tecnologias a pessoas e sociedades humanas.

Todos os três documentos internacionais, referendados unanimemente pela comunidade de nações que integram a Unesco, estão à disposição dos países, das diferentes sociedades humanas e das instituições científicas como normas internacionais não vinculantes — sem poder de lei, portanto — no sentido de apontar rumos futuros para a construção de legislações equilibradas, praticamente úteis e moralmente justas no contexto de pluralidade em que vivemos neste século XXI.

Com relação à utilização de células-tronco de embriões humanos para pesquisas, seria desejável que não houvesse imposição moral de qualquer interesse sobre outro, seja ele científico, religioso, jurídico ou político. Nesse sentido, a sabedoria está na construção de propostas afirmativas que, excluindo o paternalismo estatal que decide o que as pessoas podem ou não fazer, permitam que a decisão seja delegada às consciências individuais de cidadãos e cidadãs conscientes. Tudo isto, naturalmente, permeado por uma legislação justa e rigorosa, e por uma fiscalização sanitária adequada.


Vincent Defourny (1) Volnei Garrafa (2)
1. Representante da UNESCO no Brasil (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura). 2. Coordenador da Cátedra UNESCO de Bioética e do Programa de Mestrado e Doutorado em Bioética da Universidade de Brasília (UnB). (Publicado hoje no Correio Braziliense)

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