Poder, dinheiro, corrupção e...
Sem nenhum pudor, políticos foram filmados recebendo dinheiro de propina em meias, cuecas, bolsas e até
via Correios. Depois, ainda rezam, agradecendo a Deus a graça alcançada
Diego Escosteguy e Alexandre Oltramari
Celsio Junior/AE
DEPARTAMENTO DA PROPINA
José Roberto Arruda tinha um secretário encarregado exclusivamente de subornar aliados e achacar empresários
No dia 4 de setembro de 2006, no auge da eleição para o governo do Distrito Federal, José Roberto Arruda encaminha-se até o escritório do delegado aposentado Durval Barbosa, então secretário do governo e seu coordenador de campanha. Ele aperta a mão de Durval e lhe dá um tapinha nas costas: "Meu presidente!". Arruda acomoda-se gostosamente no sofá, dá um profundo suspiro e pede um chazinho à secretária. Tira do bolso um papelzinho e diz a Durval: "Queria ver quatro coisinhas com você. Só posso pedir para você porque é algo pessoal". Arruda começa pela corrupção miúda, pedindo a Durval que consiga emprego para o filho dele numa das empresas que mantêm contratos com o governo. Depois abusa um pouquinho mais e recomenda que o delegado "ajude" a empresa de um amigo. Finalmente pergunta sobre o financiamento para a campanha. "Estou medroso com esse troço", diz Arruda. Durval tenta tranquilizá-lo: "A gente só não pode internalizar o dinheiro". Ato contínuo, Durval abre o armário, pega um pacote com 50 000 reais e o entrega a Arruda. "Ah, ótimo", agradece o candidato. Num lapso de 23 minutos e 45 segundos, com o equipamento do ladino Durval e a desfaçatez de Arruda, produziu-se o primeiro capítulo da mais devastadora peça de corrupção já registrada na história do país.
Talvez encantado com o espírito do Natal que se aproxima, Arruda veio a público na semana passada para dizer que, sim, ele recebeu o pacotão de dinheiro que aparece no vídeo - mas que, por nobreza de coração, usou os recursos na compra de panetones para os pobres que habitam a periferia de Brasília. Nem Papai Noel acreditou. A burlesca cena protagonizada por Arruda está num dos trinta vídeos entregues por Durval aos promotores do Ministério Público do Distrito Federal, aos quais VEJA teve acesso na íntegra (assista a uma seleção dos vídeos exclusivos). Ele também forneceu documentos e prestou um minucioso depoimento, expondo as vísceras do esquema de corrupção chefiado por Arruda e pelo empresário Paulo Octávio, vice-governador de Brasília. Até o início da crise, o ex-delegado era secretário de Relações Institucionais - uma espécie de embaixador da corrupção do governo de Brasília. Cabia à turma dele coordenar as fraudes nas licitações do governo, achacar os fornecedores e repassar o butim a Arruda e Paulo Octávio, distribuindo o restante da propina aos deputados da base aliada na Câmara Legislativa do DF. Ou seja, uma versão brasiliense e democrata do mensalão petista.
A colaboração de Durval, que espera com isso receber um perdão judicial, resultou na Operação Caixa de Pandora, deflagrada há uma semana pela Procuradoria-Geral da República e pela Polícia Federal, na qual se apreenderam, nos escritórios da quadrilha, documentos e cerca de 700 000 reais em dinheiro vivo. Os promotores calculam que a quadrilha do panetone tenha desviado dos cofres públicos a formidável soma de 500 milhões de reais - de modo que os pobres de Brasília, graças quem sabe às orações da propina divulgadas por Durval, devem desfrutar um gordo Natal neste ano. Inexiste quantia, contudo, que supere a força simbólica de uma imagem como a do governador Arruda recebendo um bem fornido maço de notas de 100 reais. Não é à toa que as produções de Durval se tornaram hits instantâneos na internet e correram as televisões do mundo: nunca se registrou com tamanha precisão, muito menos de maneira tão límpida e pedagógica, a ilimitada capacidade dos políticos de ignorar os mínimos princípios de dignidade pública. O sentimento de repulsa é inevitável.
Dida Sampaio/AE
IRMANDADE
O presidente do Democratas, deputado Rodrigo Maia (à dir.), em reunião com o deputado ACM Neto (à esq.): relação fraternal com Arruda dificulta expulsão do governador
Essa indignação apareceu graças ao talento dramatúrgico do obstinado Durval. Durante anos, ele gravou com esmero as estripulias cometidas pelos maganos dessa máfia. Além da participação especialíssima de Arruda, o Generoso, aparecem nos filmes deputados, empresários, jornalistas, lobistas, burocratas, assessores. São filmes ricos em elenco - e, sobretudo, em conteúdo. Todos foram rodados nos escritórios do diretor Durval. O enredo é sempre o mesmo. Os personagens procuram o delegado em busca de dinheiro e favores. O final é igualmente previsível. Como se descobriu nos últimos dias, os coadjuvantes sempre dão um jeitinho de sair de lá com dinheiro - seja nas meias, na cueca, na bolsa, no paletó (veja os quadros). Antes de embolsarem o cachê, esses bufões da corrupção combinam negociatas e trocam confidências sobre os esquemas de cada um. Enquanto eles riem, só resta à plateia chorar: toda essa deprimente patuscada é paga com nosso dinheiro.
As gravações demonstram que Durval era o gerente da quadrilha, intermediando negociatas entre a cúpula do governo e as empresas que sobrevivem de contratos públicos. Num dos vídeos inéditos, gravado no dia 14 de outubro deste ano, Geraldo Maciel, assessor de Arruda, encaminha a Durval as determinações do governador. Maciel conta que Arruda ordenou a contratação da Brasif, empresa ligada ao DEM. "Esse pessoal vai assumir os compromissos com você", explica o assessor de Arruda. "Compromissos", na linguagem da quadrilha, significa propina. "Ele (Arruda) é quem decide", responde o delegado. Em seguida, os dois acertam como será direcionada a licitação para contratar a Brasif - e como será o rateio. "O que ficaria livre para ele?", pergunta Maciel, numa referência a Arruda. "Um e duzentos", esclarece Durval. Um milhão, claro.
Pobre Durval. Numa das conversas, Maciel, o assessor de Arruda, desabafou: "Não aguento mais o Leonardo Prudente no meu pé. Ele quer entrar em todas". Prudente é aquele deputado que guardou os maços de dinheiro na meia - e que aparece em outro vídeo, mas neste estocando dinheiro num envelope, pelo menos. Deve ter sido a única vez na qual Prudente foi... prudente. Na operação de busca e apreensão, quando os policiais estiveram em sua casa, o deputado tentou esconder sua fortuna de todas as formas. Prometeu até colaborar - mas os agentes flagraram o caseiro dele correndo na rua com uma sacola abarrotada de dinheiro. "Tudo bem, vou mostrar", anuiu Prudente, revelando aos policiais o esconderijo dos 80 000 reais que guardava em casa - a banheira de hidromassagem.
Os quadrilheiros seguiam um rígido código de conduta - quem se desviasse dele, como o voraz deputado das meias, transformava-se num pária. Nos vídeos, Durval deixava claro quais eram as regras do jogo: "Não pode levar para casa. Isso é uma distorção. Não é democrático. Tem que ajudar os outros". Para a turma do panetone, a comunhão da propina era uma obrigação moral. O publicitário Abdon Bucar, que fez a campanha de Arruda, presta serviços para o DEM e detinha contratos com o governo de Brasília, reclama de 1 milhão de reais que caíram na conta dele - caíram para ser lavados e sair de lá limpinhos. "Meu contador disse que vou ter de arranjar outra nota, que a última deu problema", explica o publicitário. Ele reclama do atraso na parte que lhe é devida. E avisa: "Vou arrochar os caras". Logo depois, cobra "os 750 000 do PFL". Durval, como sempre, ouve a reclamação com paciência e promete resolver. Depois de anos gravando e operando a corrupção, e ameaçado por 32 processos na Justiça, Durval negociou a delação premiada com o Ministério Público, por meio do jornalista Edson Sombra, um amigo dele que afirma guardar mais de uma centena de fitas envolvendo dezenas de autoridades em Brasília.
Paulo de Araújo/CB/D.A Press
DURVAL VÍDEOS
O homem que destruiu a cúpula do governo do DF tem 120 fitas com cenas de corrupção
A implosão do esquema de corrupção montado no governo do DF provocou um abalo sísmico no DEM. Diante das cenas chocantes, os democratas concluíram que a única saída para minimizar o prejuízo eleitoral do partido com o escândalo seria a expulsão imediata do governador. A estratégia, porém, precisou ser alterada após uma reunião na qual Arruda ameaçou revelar segredos que aparentemente não podem ser expostos à luz do sol. "Se vocês radicalizarem comigo, eu radicalizo com vocês", avisou o governador. Nem todo mundo entendeu. Não parece ter sido o caso do presidente do DEM, o deputado Rodrigo Maia, amigo de Arruda e padrinho de algumas nomeações em seu governo. Além da suspeita de que Arruda possa ter colocado sua máquina de desvios a serviço do partido, um detalhe ainda desconhecido liga a cúpula do DEM ao epicentro do tremor. Maia é íntimo do publicitário Paulo César Roxo Ramos, arrecadador informal da campanha de Arruda e acusado por Durval de operar a engrenagem de achaques que funcionava no governo do amigo.
A intimidade de Paulo Roxo com o presidente do partido era tal que no sábado dia 28, assim que foi divulgado o primeiro vídeo da corrupção, o publicitário correu à casa em que Maia vive em Brasília, não por coincidência alugada por outro amigo do presidente do DEM, André Felipe de Oliveira, ex-secretário de Esportes no governo Arruda. Roxo estava preocupado com a reação de Arruda caso o DEM decidisse emparedá-lo. "Você precisa segurar o partido. O desgaste pode ser muito maior se Arruda fizer uma besteira", alertou. Essa proximidade alimenta a suspeita de que a arca clandestina de Brasília pode ter contaminado o caixa nacional do partido. Na semana passada, sob a condição de anonimato, um dirigente do DEM revelou a VEJA que pelo menos oito comitês de candidatos apoiados pelo partido nas últimas eleições municipais receberam dinheiro captado por operadores de Arruda. O deputado José Mendonça, do DEM de Pernambuco, era um dos mais aflitos. Ele pediu insistentemente a deputados e senadores do DEM que poupem Arruda da expulsão.
PROPINA NA SACOLINHA
Em 2006, o deputado José Roberto Arruda, então candidato ao governo de Brasília, aparece no vídeo refestelado no sofá do gabinete de Durval Barbosa, um de seus caixas de campanha, recebendo dinheiro vivo. Apanha os maços sem nenhum constrangimento. Mostra alguma preocupação apenas em sair com as notas.
"Tô nervoso com esse troço (…). Eu tô achando que podia passar lá em casa, porque descer com isso aqui..."
Ganha uma sacolinha de papel para esconder o dinheiro - segundo ele, usado para comprar panetones para os pobres.
PROPINA NA MEIA
Uma das cenas mais acachapantes já vistas na vasta cinebiografia da corrupção foi a do presidente da Câmara Legislativa, Leonardo Prudente, colocando dinheiro nos bolsos do paletó, nas calças e, sem ter mais onde enfiá-lo, apelando até para as meias. Diante de imagens irrefutáveis, o parlamentar do DEM explicou que não havia nada de mais na cena. O dinheiro era para ser usado em sua campanha e foi acondicionado nas roupas daquela maneira grotesca apenas por questão de segurança. Na sua casa, a polícia encontrou 80 000 reais escondidos numa banheira.
- É que eu não uso pasta! - justificou.
PROPINA NA CUECA
Dono de um jornal que faz loas seguidas ao governo, o empresário Alcyr Collaço foi filmado guardando maços de notas nas partes íntimas. Para que tudo coubesse sem desconforto, ele tira até o celular do bolso da frente da calça. Em uma conversa com o ex-secretário Durval Barbosa, o empresário mostra que é bem informado sobre a distribuição da propina:
Durval: O Arruda, ele dá 1 milhão por mês ao Filipelli...
Alcyr: Oitocentos paus. 500 é Filipelli (...) Vai 100 para o Michel, 100 para o Eduardo e 100 para o Henrique Alves, e 100 ia para o Fernando Diniz. Morreu. 800 paus.
PROPINA NA BOLSA
A deputada Eurides Brito mostra que no inseparável acessório feminino cabe sempre mais alguma coisa. Na fila do mensalão, em segundos, a parlamentar entra na sala, tranca a porta, nem se senta e coloca cinco maços de dinheiro na bolsa de couro. Parecia apressada. Em conversa com o ex-secretário, Eurides ainda fala mal do patrão Arruda. Logo depois, com a bolsa estufada, a distrital deixa a sala com a mesma rapidez com que entrou.
PROPINA NO BOLSO
O deputado Junior Brunelli é corregedor da Câmara Legislativa. Caberia a ele fiscalizar a atividade de seus colegas. Em perfeita sintonia com seus pares, ele também aparece sorrateiramente no gabinete de Durval Barbosa, senta-se à sua frente, troca algumas palavras, enquanto recebe um maço de notas. Nem confere - e sequer faz qualquer comentário sobre o dinheiro antes de enfiá-lo no bolso.
PROPINA NA MESA
Representantes de uma empresa que tem contrato com o governo de Brasília entregam a Durval Barbosa uma "encomenda": uma mala preta com 298 000 reais. O dinheiro, segundo eles, era para ser dividido entre os secretários. Eles retiram pacotes de cédulas e os vão empilhando em cima da mesa.
Empresário: Vim trazer aqui uma encomenda.
Durval: Tá certo. (...) Aqui tem quanto?
Empresário: Cem... duzentos... duzentos e cinquenta, duzentos e noventa... e oito.
A ORAÇÃO DA PROPINA
Depois de uma reunião no gabinete de Barbosa, onde embolsavam propina, Leonardo Prudente e Brunelli convocam uma oração para agraceder a "bênção" recebida. Abraçados, os três ouvem a homilia proferida por Brunelli:
"Pai eterno, eu te agradeci por estarmos aqui. Sabemos que somos falhos, somos imperfeitos, mas que o teu sangue nos purifique (...) Somos gratos pela vida do Durval ter sido instrumento de bênção para nossas vidas (...)".
Brunelli é filho do fundador de uma igreja evangélica que vendia lotes no céu.
Como funciona a delação premiada
Everett Collection/Grupo Keystone
SEM SAÍDA
Denzel Washington viveu o traficante Frank Lucas no cinema: delação
A humanidade, como regra, abomina os traidores. No mundo do crime, em que vigoram normas e convenções bem peculiares, a delação quase sempre é sinônimo de pena capital para o envolvido. No mundo civilizado, a delação premiada - instituto jurídico que concede extinção ou diminuição de pena em troca da colaboração com a Justiça - tem sido uma das principais ferramentas para combater o crime organizado. Apesar de prevista na lei brasileira há vinte anos, a delação ainda é pouco aplicada no Brasil. O caso atual, com Durval Barbosa delatando os outros membros de sua quadrilha, pode abrir caminho para o uso mais intensivo desse mecanismo.
Nos Estados Unidos, esse tipo de negociação entre criminoso e Justiça, a plea bargain, foi decisivo para dinamitar as ramificações do narcotráfico na polícia de Nova York, no início da década de 70. A faxina foi possível graças a um acordo de colaboração com o narcotraficante Frank Lucas, um negro de origem pobre que fez fortuna vendendo heroína. A droga chegava à América dentro dos caixões que transportavam os corpos dos soldados mortos na Guerra do Vietnã. Tudo com a cumplicidade de militares americanos. Condenado a setenta anos de prisão, Lucas passou apenas seis anos encarcerado como prêmio por sua ajuda à Justiça. Sua história chegou ao cinema com O Gângster, filme que tem Denzel Washington no papel principal.
A delação premiada também foi decisiva, na década de 80, quando as autoridades italianas travavam um intenso combate contra a máfia. A oferta de perdão ou benefícios a delatores permitiu o desmonte de uma gigantesca estrutura criminosa entranhada no aparelho estatal. Um dos delatores mais conhecidos desse período foi Tommaso Buscetta, o principal colaborador da Operação Mãos Limpas. Além do perdão para seus crimes, Buscetta conseguiu garantia de vida para ele e a família. Suas confissões levaram à prisão perpétua de dezenove mafiosos. Depois disso, Buscetta se escondeu nos Estados Unidos. Ele não foi o único delator que ficou famoso no caso. Em retaliação às investigações, o juiz que comandou o processo, Giovanni Falcone, foi assassinado num atentado a bomba. O mafioso que detonou a dinamite usada para executá-lo também se tornou colaborador da Justiça. Só que ele tentou usar a delação para se vingar de inimigos - e acabou desmascarado. É uma lição que não pode ser esquecida. Se bem usada, a delação é capaz de implodir máfias e punir culpados. Do contrário, pode servir para destruir reputações e perpetuar a injustiça.
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Fonte: Veja.