Editorial O Estado de S. Paulo
“A Amazônia não está à venda”, disse o ministro de Relações Exteriores, Celso Amorim, numa reação às investidas cada vez mais freqüentes e mais abusadas de quem questiona os direitos do Estado brasileiro sobre seu território. “Queremos preservar nossa soberania”, acrescentou, recorrendo a uma noção usada há poucas semanas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante a visita da primeira-ministra alemã, Angela Merkel. A preservação da floresta, afirmou o presidente naquela ocasião, é uma responsabilidade soberana do Brasil. As palavras de Lula passaram quase despercebidas, assim como o absurdo da situação: por que deveria um presidente brasileiro dar satisfações a uma autoridade estrangeira sobre a política nacional para a Amazônia ou para qualquer outra região?
A “elite oligárquica” internacional está incomodada com a ascensão do Brasil como ator relevante, disse o chanceler brasileiro numa exposição a representantes do País no Parlamento do Mercosul. “Há resistências e vamos ter de nos acostumar com isso”, acrescentou. Mas a tese do ministro não dá conta de todo o problema.
A emergência do Brasil, como a da Índia e a da China, pode provocar reações adversas, mas o debate sobre a Amazônia vai muito além disso. Começou bem antes de surgir a sigla Bric (Brasil, Rússia, Índia e China), inventada por um economista para designar quatro países destinados, segundo seus cálculos, a ocupar posições de extrema relevância no século 21. A conversa sobre internacionalização da Amazônia começou há décadas. No Brasil, poucos a levaram a sério até há pouco tempo e muitos ainda não lhe dão importância.
No dia 18 de maio, o New York Times publicou reportagem com o título Afinal, de quem é esta floresta tropical? O texto é basicamente descritivo, mas aponta como “bem estabelecida” a tese da “importância global” da Amazônia como reguladora do clima. O autor lembra um comentário feito em 1989 pelo senador Al Gore, depois vice-presidente dos Estados Unidos e ganhador, em 2007, do Prêmio Nobel da Paz: “Ao contrário do que pensam os brasileiros, a Amazônia não é sua propriedade, mas pertence a todos nós.” Gore visitou o Brasil no ano passado e ninguém lhe cobrou as palavras ditas quase 20 anos antes. Tomada pelo valor de face, aquela declaração não é só uma insolência, mas um gesto hostil. No mesmo ano o presidente da França, François Mitterrand, tirou uma conclusão famosa de sua tese sobre o “direito de ingerência”: “O Brasil precisa aceitar uma soberania relativa sobre a Amazônia.”
Descartados como irrelevantes pelas autoridades brasileiras, abusos desse tipo multiplicaram-se. Há dias, o jornal britânico The Independent comentou num editorial a renúncia da ministra Marina Silva, propôs um programa conjunto de preservação da floresta e concluiu: “Essa parte do Brasil é importante demais para ser deixada aos brasileiros.”
Ninguém se iluda: não faltarão governos, políticos, organizações não-governamentais (ONGs) e grupos de comunicação dispostos a apoiar de forma cada vez mais aberta e mais articulada a interferência no território brasileiro. Muitos desses grupos já atuam no Brasil e agem sem o mínimo controle na Amazônia, como já foi indicado por testemunhos de militares, técnicos e políticos, como o deputado Aldo Rebelo. Ninguém sabe com segurança a quem servem as ONGs, missões de igrejas e outros grupos atuantes na região. Há evidências de sobra para justificar, sem qualquer fantasia conspiratória, as mais sérias preocupações.
A preservação da Amazônia, como a de todos os demais ecossistemas brasileiros, tem de ser uma preocupação de primeira ordem para todos neste país, mas não é assunto para interferência de grupos privados internacionais ou de potências estrangeiras. Para deixar bem claro esse ponto, o governo deveria, desde logo, abandonar qualquer conversa sobre financiamento de outros países para políticas de conservação. Aceitar financiamentos de governos ou de grupos estrangeiros é uma forma de encorajar a interferência. O Brasil pode e deve assumir compromissos multilaterais de preservação ambiental. Isso vale para todos. Mas o governo dos Estados Unidos, a potência mais poluidora do planeta, rejeitou o Protocolo de Kyoto. Alguém falou em internacionalizar alguma fração do território americano?