Os perigos do atalhoPor Gustavo Krieger
“As grandes crises enfrentadas por Lula nasceram das entranhas do governo. Em todas elas, alguém, no ministério ou no PT, decidiu substituir o caminho da democracia pelo atalho da esperteza”
O governo Lula tem duas faces. A pública, que acerta na condução da economia, desenvolve programas sociais gigantescos e garante ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva índices recordes de popularidade. E a outra, sombria, que vive a se enredar em manobras subterrâneas, erradas do ponto de vista moral e desastradas na prática. A mais recente é a crise política detonada pelo dossiê fabricado na Casa Civil com informações sobre gastos em cartões corporativos no governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Apesar do que possa parecer, não há uma contradição. As duas faces estabelecem a identidade do governo.
A crise atual é uma repetição de outras. A mais famosa foi a do mensalão, quando se descobriu que o PT montara um esquema de caixa 2 para financiar partidos da base de apoio do governo e ampliar a sustentação a Lula no Congresso. Depois vieram outras, como o caso dos petistas “aloprados” que foram presos quando tentavam comprar um dossiê contra tucanos no final da campanha de 2006. Todas têm como característica em comum serem crises internas, nascidas das entranhas do governo. Em todas elas, alguém, no ministério ou no PT, decidiu substituir o caminho da democracia pelo atalho da esperteza.
O mensalão nada mais foi que a tentativa de trocar a negociação tradicional no Congresso, que inclui desde o fisiologismo até concessões políticas, por uma relação hierarquizada. O PT bancava as contas dos aliados, portanto não precisaria ceder mais nada. Todo mundo sabe como a história terminou.
O mesmo acontece no caso atual. Há semanas, todo mundo em Brasília sabe que o governo montou um dossiê sobre gastos do governo Fernando Henrique. E como todos sabem? Porque o governo contou. Em conversas reservadas com jornalistas, ministros se vangloriavam de ter reunido munição suficiente para destroçar a oposição, caso eles insistissem em criar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre os cartões corporativos. Aos poucos, pipocaram nos jornais notinhas sobre gastos exóticos da administração tucana, que só poderiam vir de quem tinha a guarda dos dados. Ou seja, a Casa Civil.
Num primeiro momento, pareceu dar certo. Intimidada, a oposição fez um acordo de não-agressão, que deixava fora da agenda da CPI os gastos da Presidência da República, tanto sob Lula quanto sob FHC. Quando a existência do dossiê ficou provada, o jogo mudou. Os oposicionistas reagiram com a indignação de praxe, como se não soubessem de nada antes. Viram na crise uma chance de derrubar a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, braço direito de Lula e possível candidata à sua sucessão em 2010.
Já o governo passou a empilhar desculpas. Primeiro disse ter reunido as informações a pedido do Tribunal de Contas da União (TCU). Depois, que eram uma preparação para ajudar a CPI. Finalmente, refugiou-se num eufemismo. Diz que não existe um dossiê e sim um “banco de dados”. Bobagem. Ninguém desconhece qual era a intenção ao juntar a papelada.
Por enquanto, o governo resiste a sacrificar qualquer peça no tabuleiro. Dilma defende os funcionários da Casa Civil acusados de elaborar o dossiê. E Lula protege Dilma. Ainda não se sabe como essa encrenca vai terminar. O presidente sobreviveu a crises que derrubaram outros auxiliares fundamentais, como José Dirceu, Antonio Palocci e Luiz Gushiken. Aliás, essa é a marca fundamental deste governo. Aconteça o que acontecer, Lula sobrevive.
Foi o presidente quem cobrou dos ministros e de sua bancada uma reação aos movimentos da oposição em torno da CPI dos Cartões. Mas ninguém dirá isso. Porque Lula é o governo.
Há um bom tempo, desde o escândalo do mensalão, o presidente aposta que as crises políticas não contaminem a relação do governo com a maioria dos brasileiros. Avalia que a face pública do governo vai prevalecer. Até aqui, deu certo. Mas é perturbador ver que a outra face, a da esperteza, surge como um fantasma a cada esquina. E perceber que as duas são indissociáveis.
Fonte: Correio Braziliense