Brasília, capital de todos os brasileiros, vive sendo injustiçada. Falam de corrupção, de desmandos, mas não falam de outros assuntos que rodeiam essa cidade singular, planejada, patrimônio cultural da humanidade — título concedido pela Unesco. Cidade de contrastes, de espaços abertos, de integração, de ritmo próprio, de todos os falares e sotaques. Cidade de imigrantes e emigrantes. Cheia de embaixadas e de caldos de cana e por-do-sol decantado em músicas, como a famosa de Djavan e Caetano Veloso, Linha do Equador: “Céu de Brasília , traço do arquiteto, gosto tanto dela assim”. Brasília, por ser a capital federal e abrigar as mais importantes representações de imprensa, políticas, religiosas e diplomáticas, é a base ideal para um veículo de comunicação como o nosso. Entretanto, trabalhar a informação em Brasília requer considerar as especificidades de uma Capital Federal. Com efeito, pela sua característica de principal centro de decisões políticas do País, Brasília é a cidade para onde mais se estendem as vistas, as preocupações e os interesses da Nação. Mesmo nos grandes centros urbanos, nos que têm os maiores parques industriais, maior autonomia e dinamismo econômico, mesmo - ou especialmente – nestes sabe-se das profundas imbricações ( para não falar em dependência) que seus negócios, suas atividades, estabelecem com as decisões geradas, gestadas e geridas a partir da capital política do País. Brasília não é somente o lugar onde as coisas acontecem – é, principalmente o local onde se fazem acontecer as coisas. Para isso, presume-se, a informação adquire, em Brasília, outra qualidade: deixa de ter importância acessória, adjetiva, e torna-se elemento fundamental, substantivo. Vale dizer: a informação, na Capital Federal, não somente auxilia um negócio; ela é o negócio. Desta forma, ausente a informação, desaparecem os próprios negócios: como num passe de mágica, empresas são extintas, instituições são liquidadas, órgãos públicos são fundidos. Decisões são tomadas a todo instante. Uma assinatura e o que existia há anos passa a ser só referência histórica. Por isso, nossa revista abriu o canal e foi ouvir pessoas que têm muito a dizer sobre essa cidade quase cinquentona e que ainda inspira e transpira criação e luz.
Por Isabela Martin
Brasília, nossa terra
Personalidades que vivem Brasília falam de diferentes aspectos
da cidade prestes a completar 50 anos
Duzentos anos de história do Território Brasiliense
Por Deusdedith Junior
Coordenador de História do UniCeub, mestre e doutorando em História, autor do livro “Viagem pela Estrada Real dos Goyazes”
Brasília e o Distrito Federal nasceram juntas há quase 50 anos. É raro viver em um lugar em que a maioria das cidades tem mais ou menos a mesma idade e a mesma origem. Brasília nasceu de fora pra dentro. Vieram aqui construir e habitar a cidade e a região brasileiros dos mais longínquos rincões. Quem construiu Brasília foi gente que veio “de fora”, de outros cantos do Brasil. É correto afirmar o que foi dito acima, mas isso não conta toda a história dessa região.
Este lugar já era habitado antes? E se era, quem e onde morava por aqui? A ideia do “zero absoluto”, do “deserto” no Planalto Central parece suspeita quando insistimos em negar a herança goiana desse lugar. Fizemos do goiano o nosso par opositor da identidade brasiliense, e para reforçar este argumento contamos a história de Brasília, mas não a história de uma região. Em síntese, não temos uma história regional — somente uma história de Brasília —, pois ela revelaria outros 150 anos de história que não gostamos muito de lembrar.
O poeta bem humorado Nicholas Behr já nos lembrava desse esquecimento: “… bem, o sr. já nos mostrou os blocos, as quadras, os gramados, os eixos, os monumentos… será que dava do sr. nos mostrar a cidade propriamente dita!?” E para além da cidade, podemos nos surpreender ao olhar para a longa história que nos conta o mapa do Distrito Federal.
A hidrografia do Distrito Federal teve todos os seus rios batizados antes da construção da grande cidade. E o que encontramos são nomes que se referem à vida rural: Sobradinho — nome de fazenda; São Bartolomeu — homenagem ao descobridor das minas do Goiás; Fazendinha; Valos — demarcadores de fazendas; Açude; Monjolo; Contagem — antigo posto fiscal; Descoberto — relativo à mineração; Gama — nome de uma antiga fazenda. E poderia ser grande a lista, pois grande é a quantidade de cursos d’águas que irrigam o nosso quadrilátero. Compõe-se aí uma história de ocupação intensa — quase todos os rios já eram conhecidos — que se completa com uma sutil malha viária a ligar as fazendas, umas às outras, e estas às vias principais que ligavam o Goiás à Bahia e a Minas Gerais.
Poderíamos imaginar que essa história das fazendas desaparecerá por completo. Mas nos basta passear pelos circuitos do turismo ecológico e rural do Distrito Federal para encontrarmos casas do século XIX, vestígios de cemitérios antigos e outros restos desse passado que até nas áreas intangíveis do Parque Nacional de Brasília se escondem entre as mangueiras (plantas exóticas), prova concreta de que grandes fazendas existiram ali. Deveríamos recuar a nossa história ao século XIX para nos compreendermos melhor.
Mais longe que isso, porém, encontramos os vestígios de mineração do período colonial nas curvas dos rios da região de Taguatinga — mais uma palavra daqueles tempos, em Tupi-Guraní —, Samambaia e Gama — aquela antiga fazenda. Mais distante ainda no tempo, os restos de cerâmica e outros objetos deixados por tribos indígenas que caçavam intensamente nesta região, e ainda as pontas de lança e outros instrumentos de pedra pré-históricos (de até 6 mil anos atrás) que se revelam aos atentos observadores da antiguidade desse lugar.
Não foi uma completa surpresa encontrar entre os documentos goianos guardados no Arquivo Histórico Ultramarino, em Portugal, um relato de viagem escrito por um tropeiro, José da Costa Diogo, em 1734, contendo uma relação dos lugares por onde passou, vindo de Minas Gerais em direção à área de mineração goiana e citando fazendas, rios e outras referências que ainda pertencem ao vocabulário do mapa do Distrito Federal.
Na linguagem do século XVIII, o viajante descreve os lugares por onde passou: “Dos Bezerras a Lagoa Fea; Dahy a Bandeyrinha; Dahy a João da Costa; Dahy ao Monteiro; Dahy ao Sobradinho; Dahy às Três barras; Dahy aos Macacos; Dahy ao Ribeirão da Área; Dahy ao Corumbá que não está povoado; Dahy ao Arrayal da Meyaponte”. Este é o antigo percurso daquela que mais tarde se tornou a Estrada Real de Goiás e que ainda podemos percorrer em um pequeno trecho que contorna no Parque Nacional de Brasília.
Este é, até o momento, o mais antigo relato de uma passagem pela região do Distrito Federal. Uma história de duzentos anos que mesmo longe dos registros oficiais sobrevive aos pedaços, ao lado, por baixo e por cima do concreto armado da grande capital.
Em geral, quando nos referimos à ocupação do território goiano, e isso se estende também ao Distrito Federal, falamos de um vazio demográfico que parece indicar uma ocupação incompleta ou rarefeita. Mais uma vez miramos com olhos de “estrangeiro”. Diferente do litoral, que concentrava um leque de pequenas cidades em torno de um grande centro, ou do Sudeste, principalmente Minas Gerais, que produziu um rosário de vilas que seguiam os veios de ouro, muito próximas umas das outras, o sertão goiano foi plenamente ocupado por uma rede de pequenas vilas distantes umas das outras, mas ligadas por um emaranhado de estradas costuradas às fazendas.
Vale mais uma vez recorrer aos versos do poeta intrigado Nicholas Behr: “mapa na mão/ olho no mapa/ mão no olho/vamos tentar encontrar a cidade”.
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Fonte: Revista Fale Brasília!