Por Mauro Santayana
Em sua coluna de sábado, Villas-Bôas Corrêa fala do antigo Congresso, quando a Câmara dos Deputados ocupava o Palácio Tiradentes, e o Senado o Palácio Monroe, no Rio. Ao referir-se à homenagem que lhe prestou a Assembléia Legislativa do Rio, faz evocação nostálgica da vida parlamentar durante os 18 anos da República de 1946. Como lembrou, o Congresso era composto de pessoas muito mais preparadas do que as de hoje.
Não que faltem ao parlamento atual homens de excelente cultura política, mas o meio não os excita a demonstrá-la. A situação lembra a cruel anedota que circulava durante o governo Hermes da Fonseca: visitando Maurício de Lacerda no gabinete presidencial, Afrânio Mello Franco perguntou-lhe se ali se encontrava a fim de impedir a entrada da inteligência. O grande tribuno – pai de Carlos Lacerda – respondeu que não; ali estava apenas para impedir que a ignorância saísse.
Os bons parlamentares de hoje se esfalfam, a fim de impedir que as fronteiras do bom senso sejam rompidas pela desinteligência política de seus pares. Se essa situação é constrangedora na Câmara dos Deputados, é pior no Senado, que se presume ser, nos sistemas bicamerais, a casa mais sábia e mais prudente. É provável que uma das causas esteja na presença ilegítima dos suplentes, não obstante a legalidade constitucional de sua convocação. É sempre importante lembrar a observação de Pitt sobre a corrupção na Câmara dos Comuns de seu tempo: as maçãs podres de um cesto costumam apodrecer as sadias.
Nesta quarta-feira, o Senado deverá votar o relatório do senador Jarbas Vasconcelos sobre a chamada Lei do Gás. O tema pode parecer irrelevante a muita gente – mas não é. Segundo a Constituição de 1988, os Estados da Federação detêm o monopólio da distribuição de gás em seu território. Os constituintes de 1988 partiram da posição correta. Tratando-se de insumo energético importante para o desenvolvimento regional, cabe aos Estados, mediante empresas públicas, mistas, ou privadas sob o regime de concessão, o controle da atividade. Em sua maioria, os Estados detêm o controle acionário das empresas distribuidoras e as administram diretamente.
O monopólio dos Estados é, assim, mandamento constitucional, e só pode ser alterado por emenda à Carta Maior, como saberiam os velhos contínuos do Palácio Monroe, e alguns senadores parecem desconhecer. O relatório do senador Jarbas Vasconcelos respeita fielmente o parágrafo 2º do artigo 25 da Constituição, que determina: "Cabe aos Estados explorar diretamente, ou mediante concessão, os serviços locais de gás canalizado, na forma da lei, vedada a medida provisória para sua regulamentação". É bom notar que os constituintes de 1988 deram importância singular ao mandamento, inserindo-o no artigo 25, que trata do quadro geral da divisão das atribuições entre a União e os Estados-membros. E dotaram o dispositivo de proteção expressa contra a sua regulamentação por medida provisória. Mesmo assim, no conjunto das reformas neoliberais do governo anterior, já houve a flexibilização do mandamento, que antes não admitia a concessão a empresas privadas.
Os grandes consumidores de gás pressionam o Senado, a fim de que admita a compra direta à Petrobras, nas estações de chegada do gasoduto às cidades consumidoras. Isso violaria o monopólio constitucional e prejudicaria diretamente os Estados, que se apropriam de pequena margem do lucro da distribuição, para investir em infra-estrutura.
Mas há senadores que anunciam o interesse de prejudicar seus próprios Estados, com o propósito de favorecer os consumidores de grande porte, como são as usinas siderúrgicas e termelétricas privadas. Seus interesses não podem prevalecer sobre os direitos da Federação.
Embora o relatório de Jarbas Vasconcelos deva ser votado na quarta-feira, os governadores ainda se movimentam, nestas horas, a fim de chamar a atenção dos senadores para o prejuízo que causarão aos seus coestaduanos. Devem entender que representam os interesses de cada uma das unidades federadas no conjunto nacional. Todas serão prejudicadas, se o monopólio for violado pela concessão desse privilégio às grandes empresas consumidoras.
Não nos encontramos mais no tempo em que o AI-5 prevalecia sobre a ordem jurídica e constitucional. O respeito à Constituição é o primeiro dever dos ocupantes dos três poderes da República.